Tenho dúvida se ele não poderá estar dentro do espectro da esquizofrenia! confessava o colega. Então, porquê? perguntava-lhe o outro. A narrativa dele é muito fantasiosa. Chega a parecer que não vive neste mundo! continuava. E conseguiste observar algum outro sintoma associado? perguntava-lhe o outro. Estranhamente não, respondia-lhe este. Apesar de ter um discurso também ele estranho e outras características, mas não parece igual a outros que vemos dentro da esquizofrenia, rematava. Talvez seja preciso mais tempo com ele, respondia-lhe o outro com um tom mais ponderado.
Este breve diálogo procura chamar a atenção para aquilo que por vezes observamos dentro do espectro do autismo. Uma predileção única, intensa e infinita pelos mundos imaginários. Sejam aqueles presentes nos livros, séries e filmes, mas também aqueles que os próprios vão criando ao longo da vida.
Quantos de nós não nos vimos “presos” dentro de uma série do Harry Potter, ou do Universo Marvel, One Piece, Naruto, Game of Thrones, Star Wars, entre outros tantos? E não, não estou apenas a perguntar às crianças! Até porque os jovens e também os adultos fantasiam. E estes últimos porventura necessitariam de fantasiar um pouco mais, face à aparente hiper realidade vivida nos dias de hoje.
Mas porquê trazer esta questão dos mundos imaginários no autismo? E como é que conseguimos relacionar a capacidade de imaginar mundos e relações sociais complexas entre diferentes personagens, quando se diz que as pessoas autistas têm elas próprias um défice nas interacções sociais e na capacidade imaginativa?
Quando me dizem que estou noutro mundo, só me apetece rir! diz João (nome fictício). Se eles soubessem por onde é que eu ando! exclama. Mas têm razão, estou mesmo em outro mundo, ou mundos melhor dizendo! acrescenta.
A preferência pela ficção "dominante no mundo", que se concentra principalmente nos detalhes do cenário e não nas personagens ou narrativa, é de facto geralmente considerada como sendo uma característica associada ao autismo. Os mundos imaginários fictícios fornecem um sistema fechado perfeito para se investigar e sistematizar. Ao contrário do mundo real, é possível adquirir um conhecimento e compreensão completos de todas as facetas de um mundo imaginário.
Aquilo que muitos pensam que o mundo de fantasia não faz sentido, é subjectivo, de difícil compreensão, entre outras coisas, não o é, diz Ester (nome fictício). Pode ser para muitas pessoas que não faz o mínimo esforço para ficar e deixar-se envolver, acrescenta. Aquilo que eu sinto no mundo real, parece que é aquilo que as pessoas não autistas sentem em relação ao mundo de fantasia, continua. Principalmente os adultos, finaliza.
As pessoas de uma maneira geral associam a fantasia às crianças, diz Júlio (nome fictício). E então acham que nas pessoas autistas faz sentido poderem gostar de fantasia, porque as consideram como se fossem crianças, diz. E nem sequer se esforçam minimamente para compreender a complexidade das relações presentes nestes mundos de fantasia. Acham-os simplesmente infantis. Não querem saber, assim como também acho que não querem saber do autismo! conclui.
No principio penso que comecei a criar estes meus mundos imaginários para fugir deste outro real, diz Carla (nome fictício). Os desafios eram tantos e todo o dia que apenas me sentia segura quando lá estava dentro desses mundos, continua. Porque é que isso é assim tão estranho? pergunta de forma retórica.
Sim, sinto que aquelas personagens não são apenas isso, diz Carlos (nome fictício). São meus amigos. São eles que me ouvem. É com eles que falo, diz. Crio estes mundos à semelhança daquilo que penso que gostaria de viver. E sim, fico muito apegado a eles. No mundo real não me é permitido vive-los, conclui.
Não, as minhas personagens não são apenas pessoas autistas, diz Amélia (nome fictício). E também não são apenas pessoas boazinhas, tipo fadas, refere. As pessoas nestes meus mundos de fantasia são pessoas tão ou mais reais como no mundo real, acrescenta. Têm sentimentos, vida própria, tudo, conclui.
Somos seres sociais, diz Raúl (nome fictício). E como tal procuramos relacionar com as pessoas. Com quais? pergunta retoricamente. Com aquelas que desejarem. E por isso procuramos encontrar uma personagem através de meio que é a fantasia e tratamos-a como se fosse outro ser humano, conclui.
Esta divisão é possível. Poder pensar entre a imaginação intersubjectiva externa e a imaginação intrasubjectiva interna. Enquanto que a primeira apoia a previsão da interacção no mundo externo. A segunda relaciona-se com as fantasias internas, as relações parasociais, e prossivelmente com aquilo que consideramos como pertencente à criatividade artística. A primeira está sujeita àquilo que são as características do espectro do autismo, mas não a segunda. É como se esta estivesse isenta ou fosse regulada por outras regras, assim como os sonhos o são.
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