A hipermetropia é uma dificuldade visual e que afecta a visão ao perto. Alguns de vocês já terão tido a sensação de ver desfocado de objectos perto de si. Mas quando procuram olhar à distância conseguem recuperar a qualidade da visão.
O objectivo deste texto não é falar-vos das dificuldades na acuidade visual, mas sim de algumas questões que por vezes parecem simular esta mesma questão - dificuldade de ver ao perto, metaforicamente falando. Ou seja, já muitos de vocês terão usado a expressão Só faltava o objecto que procuravas te ter mordido, certo? Ou seja, a pessoa estava mesmo perto do que procurava mas não estava a conseguir encontrar e isso não é justificado por dificuldades na visão. E isso parece acontecer ainda mais quando falamos não de objectos mas de questões ou conceitos que não são palpáveis e muitos deles são complexos e subjectivos. Por exemplo, quantos de vocês não estiveram já numa situação em que estando a sentir algo do ponto de vista emocional a pessoa que estava consigo parecia não estar a identificar? Muitas vezes as pessoas queixam-se nisso nas relações amorosas e não só. Mas também não é bem sobre isso que vos quero falar.
Aquilo que vos quero dizer é que este tipo de situação também acontece muito na prática clinica. Ou seja, esta dificuldade em poder conseguir compreender o diagnóstico da pessoa que estamos a avaliar. Principalmente porque a natureza humana é bastante complexa, mas também porque há uma grande sobreposição de características e traços comportamentais que pertencem a condições diferentes. E além do mais, os manuais de diagnóstico existentes (DSM e ICD) também não ajudam porque arrumam os diagnósticos como categorias, quando todos já estão cansados de saber que são dimensões e muitas das vezes dinâmicas. Ou seja, que vão tendo alterações ao longo do percurso de vida da pessoa. Além de variar dependendo da própria comorbilidade psiquiátrica que se verifica.
E já todos ouviram falar que as pessoas autistas experenciam em grande número a ocorrência de outras perturbações psiquiátricas ao longo da sua vida. Além de sabermos que há uma expressão comportamental do autismo diferente consoante estamos a falar de homens e mulheres. E que existe aquilo que tem sido designado de camuflagem social. Bem como, quando estamos a falar da realização de um despiste de Perturbação do Espectro do Autismo na pessoa adulta, esta mesma dificuldade aumenta significativamente. Até pela própria dificuldade em poder ter uma informação fidedigna acerca dos aspectos desenvolvimentais do período da infância.
Seja Perturbação de Hiperactividade e Défice de Atenção, Perturbação de Oposição e Desafio, Perturbação Obsessivo-Compulsiva, Perturbação de Ansiedade Social, Perturbação de Ansiedade Generalizada, Perturbação do Humor, Perturbação Bipolar, Perturbação da Personalidade Borderline, Perturbação da Personalidade Esquizotipica ou Psicose. Muitos destes outros diagnósticos estão presentes num número significativo de pessoas autistas. Ou então poderão haver traços comportamentais dentro do que é o perfil encontrado nesses mesmos diagnósticos. Ou seja, é muito possível que quando estamos perante uma pessoa autista, possa haver da nossa parte, sejamos profissionais de saúde ou outros, uma maior dificuldade em conseguir fazer esse mesmo reconhecimento quando a pessoa e os seus comportamentos estão tão perto de nós. Certamente que uns e outros terão responsabilidades diferentes, mas ainda assim não deixamos de as ter.
Será certamente fácil poder dizer que é uma depressão ou ansiedade porque estão a ser verificados todo um conjunto de sinais e comportamentos compatíveis com os critérios de diagnóstico presentes no referido manual, seja o DSM 5 ou ICD - 11. Mas será apenas isso? Muito provavelmente a resposta é NÃO. Há muito que se verifica que não existe essa coisa de um diagnóstico estanque, único e puro. Aquilo que observamos na maior parte das vezes é uma mescla de outros traços comportamentais e características que também se observam em outros diagnósticos. E que além disso, estes mesmos traços e características partilham processos cognitivos e neuronais semelhantes. E que também por isso apresentam uma tão grande semelhança entre si em algumas vezes. Não deixando de ser coisas que são explicadas de forma diferente de acordo com a história de vida da pessoa.
E também por isso é que cada vez mais clínicos e investigadores têm apelado à introdução de uma visão de transdiagnóstico e que se interliga na clínica mas também na investigação quando falamos dos RDoC (Research Domain Criteria).
Até porque verificamos no autismo que a expressão daquilo que é uma depressão ou ansiedade parece ter uma apresentação diferente quando se interliga com aquilo que são as características do diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo no perfil de funcionamento daquela pessoa especifica. Não é também por acaso que alguns médicos referem a existência de alguma resistência a determinada intervenção farmacológica para reduzir determinados sintomas, sendo que existem outras razões de ordem neurofisiológica que o justificam. E no que diz respeito à escolha da intervenção psicoterapêutica que melhor se adequa à pessoa autista, também aqui é preciso cautela na tomada de decisão.
O processo de intervenção e a sua escolha não pode única e exclusivamente basear-se naquilo que é a intervenção baseada na evidência. Ou seja, sabemos que a intervenção Comportamental e Cognitiva é aquela que frequentemente é vista como sendo a intervenção de eleição porque foi investigada e concluiu-se que é a intervenção baseada na evidência. Mas quando usamos um programa de intervenção desses para trabalhar os aspectos da depressão e ou da ansiedade numa pessoa autista, verificamos que necessitamos de fazer determinadas adaptações, correndo o risco de não verificarmos uma alteração da situação clinica da pessoa, caso optemos por rigidamente usar o programa de uma forma standard. E isso não é de estranhar. Até porque se tivermos uma pessoa autista em acompanhamento, mas que a pessoa apresenta uma perturbação de ansiedade e do humor e característica de um défice de atenção, não podemos estar a aplicar um programa diferente para cada uma destas questões. Além de não existir um programa de intervenção cientificamente testado e que inclua uma resposta clinica adequada para o conjunto de todas estas situações aqui referidas. E por isso a importância de ser repensado a importância de um modelo transdiagnóstico, seja do ponto de vista clínico mas também na investigação cientifica. E são já vários os clínicos dentro do modelo comportamental e cognitivo que sugerem que este possa modelo de conceptualização possa ir ao encontro do transdiagnóstico. E se pensarmos que no espectro do autismo, a regulação dos aspectos emocionais e comportamentais, assim como a ansiedade devido à incerteza, continuam a constituir aspectos tão impactantes na vida da pessoa autista ao longo da vida. Será fundamental que as propostas de intervenção possam responder a estas necessidades.
E não esquecer que é fundamental que todas estas reflexões possam incidir nos instrumentos de avaliação usados e no treinamento dos profissionais de saúde para estarem atentos a esta intersecção de características. Até porque se tem verificado uma escassez de guias orientadores no processo de avaliação em situações clinicas em que se verificam situação frequentes de outras condições psiquiátricas. Facto que leva a que muitos profissionais possam não estar suficientemente sensibilizados para a importância e para os próprios instrumentos a usar. E quanto aos demais, sejam profissionais da área da educação ou de outra, assim como as pessoas comuns, procurem ter maior tolerância e compreensão naquilo que à partida já é complexo na sua natureza e não fazer julgamentos de acordo com um dificuldade em ver as coisas perto de vocês, sendo que a dificuldade é vossa e não dos outros.
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