Ainda me recordo da célebre cena no filme "Uma questão de honra" em que Tom Cruise enquanto advogado contracena com Jack Nicholson fazendo o papel de um oficial superior. A determinada altura este último diz ao advogado - "Quer a verdade? Você não consegue lidar com a verdade!". Nos filmes como na vida a fronteira entra a verdade e a mentira pode assumir uma distância muito curta. No entanto, nos últimos anos, a pretensa verdade de alguns tem trazido um impacto cada vez maior nas pessoas que a assumem enquanto tal. No caso da Perturbação do Espectro do Autismo (PEA) os exemplos têm sido inúmeros.
Fora das salas de seminários do departamento de filosofia, a verdade parece ser um assunto óbvio e quotidiano. Não precisamos de a explicar para nós. No nosso modo de vida, a verdade e seus conceitos cognescentes (correctos, precisos, reais) e as actividades de dizer a verdade são centrais para nossas instituições de ciência, política, direito e educação. Mas, mais fundamentalmente, faz parte da infraestrutura cultural dentro da qual existimos e entendemos o mundo. É um dos poucos conceitos abstratos que servem como uma espécie de andaime intelectual na nossa civilização. Mas o questionamento acerca da verdade e do seu contrário ainda hoje permanece.
Numa altura em que a produção cientifica tem crescido e a proliferação de estudos, uns com lacunas metodológicas mais visíveis do que outros, o certo é que a utilização desta justificação tem sido cada vez mais utilizada. Por exemplo, há um estudo que foi publicado a semana passada e que determina que "A" causa "B". Poderia não passar de algo inofensivo e quase totalmente ignorado. Não fosse o caso de ser dito que a ingestão de lixívia ajuda a curar o autismo. Muitos poderão dizer que só podemos estar a falar de uma partida. Mas não estamos. São várias as crianças que têm sido levadas ao hospital por intoxicação com lixívia. Mas não é caso único, se pensarmos nos exemplos que se têm arrastado com a defesa da não utilização de determinadas vacinas em crianças justificando o surgimento do autismo com a sua toma. Ou da dieta livre em glúten para o tratamento dos sintomas presentes numa Perturbação do Espectro do Autismo. Os exemplos não param. A proliferação das chamadas "fake news" tem sido uma constante nestes últimos 70 anos desde o surgimento do autismo na gíria médica.
E o que dizer quando no caso das vacinas, o autor do estudo polémico ter sido desmentido e obrigado a retratar-se e ainda assim o próprio movimento continua a existir e a levar pessoas a correr riscos sobejamente desnecessários e com risco de vida para as crianças e para a saúde pública!? Ou no caso da ingestão de lixívia, quando as próprias autoridades de saúde já vieram dizer de diferentes formas que esse tipo de tratamento não só não cura o autismo mas também pode causar intoxicações graves e morte! Porque é que aparentemente face à verdade demonstrada cientificamente continuamos a não aceitar e a decidir por outras respostas?
Em outras situações menos visíveis para muitos de nós temos o exemplo do modelo de intervenção ABA (Applied Behavior Analysis). No caso dos EUA este modelo continua a ser repetidamente apontado como a melhor resposta de intervenção para a Perturbação do Espectro do Autismo. E no caso do Reino Unido e nos há muito conhecidos guias NICE [National Institute for Health and Care Excellence] se pode ler que não há qualquer evidência cientifica da validade superior da intervenção ABA sobre outros modelos de intervenção, e que como tal não são recomendadas.
Muitas das pessoas envolvidas na Perturbação do Espectro do Autismo, sejam os próprios mas também as famílias, e já agora um conjunto grande de profissionais, estão distantes da realidade existente. Seja da realidade clinica mas também do trabalho cientifico que continua a ser realizado. Nos casos mais visíveis, continuamos a ter inúmeras situações de correlações espúrias e que continuam a ser lidas como causalidade. E que como as frases são antecedidas de "Foi publicado um estudo cientifico que afirma..." algumas pessoas pensam que essa informação é inquestionável. Mas não é! Estas correlações seria como estar a dizer que o aumento do consumo de gelados na Costa de Caparica está relacionado com o aumento do número de afogamentos em período igual. Muitos de nós começará a rir. Mas outros ficaram com ar de questionamento.
Muitas das pessoas envolvidas não têm formação suficiente. Ou no caso de a terem, também têm angustia suficiente pelo facto de terem um filho/a com Perturbação do Espectro do Autismo e que gostariam de não o/a ter. E como tal, em determinado momento, procuram por tudo tentar fazer com que tal deixe de acontecer. Mesmo que muitas das situações possam parecer algo absurdas. É fundamental, perceber quais as razões que levam as famílias e os próprios a tomarem determinadas decisões que os estão a colocar em risco. Mais do que nos voltarmos contra as pessoas precisamos de encontrar respostas que as ajudem a procurar questionar o que lhes é proposto e a tomarem uma decisão informada.
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