Eu sei que a frase - "Quando a vida te dá limões..." costuma terminar de forma diferente. E normalmente acaba em limonada. No meu caso não tem problema porque adoro limonada. E se for sem açúcar melhor. Mas há quem de pensar só em ser sem açúcar e começa logo a arrepiar-se. E depois há aqueles que odeiam limonada. E outros que não podem de todo com o cheiro do limão. É como a vida. Apesar de muitas vezes poder ser amarela pode ser tingida de vários sabores. E principalmente de sabores que sejam do agrado da pessoa. Ou que ela possa estar disponível para experimentar. Nesta altura de pandemia, que em Portugal já vai na 4ª semana, se há coisa que muitas pessoas têm demonstrado é a sua capacidade de inovar, reciclar, transformar, criar, mas também de respirar simplesmente. Há cerca de duas semanas para cá que cada vez mais oiço pessoas a dizer que até se estão a habituar a esta situação. E que o isolamento social afinal não está a ser um inferno. E que até têm contactado e conhecido mais pessoas. E outros que dizem que nunca se sentiram tão à vontade em falar com as pessoas por videoconferência. E que até já fazem "saídas à noite" com os amigos.
A nossa nova mudou. É um facto. Mas a nossa vida, a vida da humanidade não faz outra coisa senão mudar, transformar e adaptar-se. Ainda que o tempo em que estes processos aconteçam sejam num intervalo em que a nossa existência não dá conta. Ou que nós nem sequer nos apercebamos devido à velocidade com que vivemos nesta pós modernidade. O conjunto de estímulos que concorrem para ter a nossa atenção é cada vez maior. E para isso também tem havido uma capacidade do nosso cérebro para se poder adaptar. E por conseguinte isso transparecer nos nossos comportamentos.
A nossa vida muda quando nascemos. A vida intra uterina não tem comparação com o que acontece cá fora. Apesar de hoje sabermos mais do que se passa lá dentro. Que os bebés sorriem e comunicam com a mãe, além de sentirem uma gama ampla de sensações diferentes. Mas se há sensação que deve ser sentida como agressiva é o momento de expulsão do útero materno, isto na perspectiva do bebé. Mas a vida continua. Depois entramos na creche ou jardim de infância. Deixamos de estar num estado quase fusional com os nossos pais, principalmente com as nossas mães, até por razões primordiais da amamentação.E de repente, pelo menos é assim que muitos o sentem, somos colocados num espaço com outros, normalmente estranhos, adultos e crianças diferentes. E a vida continua. Voltamos a ter uma sensação semelhante na entrada do 1º ciclo. Em que muitos deixam de ter contacto com os agora seus amiguinhos e passam a conhecer outros. E repetimos no 5º ano quando deixamos a estrutura arquitectónica onde estivemos quatro anos e passamos para outra com mais de tudo - colegas, disciplinas, professores, tudo. E a vida continua. Acontece o mesmo na transição para o Ensino Secundário. Sendo que além de acrescer na complexidade das disciplinas e conteúdos programáticos as relações sociais também se complexificam exponencialmente. E a vida continua. E o que dizer em relação à pressão sentida durante esses três anos com a transição para o Ensino Superior? E o Ensino Superior em si, em que muitos passam a viver fora de casa onde sempre viveram e do distrito onde sempre viveram e até mesmo do pais. Passam a partilhar uma residência ou um apartamento com um conjunto de outros que estão em situação igual. E depois passam três, quatro ou cinco anos a pensar sair para poder entrar no mercado de trabalho. E a vida não pára.
Na verdade a vida nunca pára e continua a existir mas sempre de uma forma diferente em constante adaptação. E depois acontece esta situação da pandemia que nos obriga a ter um conjunto de constrangimentos e de ter de fazer a vida de uma forma diferente, pelo menos em certos aspectos.
Há pessoas que se têm sentido mais adaptadas a esta situação. Seja porque já trabalhavam a tempo inteiro ou parcial em regime de teletrabalho. Ou já tinha estado um período a trabalhar neste regime. Outros que por razões próprias já não sentiam grande necessidade de saírem socialmente. E depois há toda uma grande variedade de pessoas que têm estado cada vez mais adaptados a contactar através das redes sociais, por telefone/telemovel e principalmente por smartphone. Este último faz uma grande diferença até porque permite a ligação à internet. E com isso podemos fazer videochamadas nos nossos equipamentos móveis. Ou jogar online também. E se formos atender à média de tempo que todos nós já passávamos ligados às tecnologias e aos ecrãs não nos espantamos que muitos de nós se estejam a sentir integrados. O próprio número de equipamentos moveis per capita em Portugal é grande, assim como o número de televisões, sendo que muitas delas já se ligam também por internet. E dentro destas várias pessoas, há aquelas com quem trabalho directamente na clinica que têm uma Perturbação do Espectro do Autismo (PEA). E também estas referem que se têm sentido adaptadas à situação, mesmo que algumas delas por razões ligeiramente diferentes.
São várias as pessoas que dentro desta condição - PEA, tem referido que este formato de contacto por videoconferência lhes facilita em muito o contacto social. Até porque era algo que já sentiam no contacto online. Mesmo com câmara a pessoa poderá não ter de estar tão focada num contacto ocular directo. E quando a videoconferência é com mais pessoas a nossa imagem diminui substancialmente e isso facilita ainda mais a situação. Também há o outro reverso da medalha. Como sempre houve na vida e para todos. A forma de processar a informação pode dificultar o modo de comunicação em videoconferência pelo conjunto mais amplo de estímulos a que passamos a estar sujeitos. Mas isso também pode ser acautelado mudando alguns aspectos no nosso contexto e até com alguns mecanismos tecnológicos que estão ao nosso alcance para tornar mais fácil o processo de conversação. Mas a interacção social também ela passou a ser possível de muitas outras formas. Se antes disto tudo seria visto como mais complexo e difícil poder iniciar uma conversa com alguém online. Até porque parecia não haver nada em comum. Agora, a pandemia liga-nos a todos. Somos todos "filhos" do Covid-19. E todos temos algo a dizer sobre a situação, independentemente do que seja. A nossa experiência passou a contar. Facto que antes nem sempre era tida em conta. E além disso, há várias pessoas com PEA que têm conseguido evidenciar as suas competências, que já lá estavam mas que agora se tornam salientes e até mesmo apreciadas.
Há quem diga que está a aguardar que a vida volte a ser o que era. À normalidade referem algumas pessoas. A normalidade é esta constante transformação em conjunto com todas estas rotinas que vão em conjunto fornecendo sentido à nossa existência. Haverá certamente sobressaltos e alguns percalços nestes processos de transição. Sempre os houve. Tal como quando nos decidimos ensaiar numa nova receita de cheesecake de limão as coisas não tendem a sair bem logo à primeira. Mas isso não quer dizer que não possa ser algo positivo. Será certamente uma experiência que nos ajudará na próxima. Seja ela qual for.
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