Chamo-me Filipe (nome fictício). Tenho 19 anos. Sou demi sexual. O mês passado recebi o diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. Este ano vou concorrer pela segunda vez ao Ensino Superior para Geografia. É a minha área de interesse, sempre foi. Quero ser meteorologista. Os meus colegas sempre me chamaram Rain man por causa de eu estar sempre a falar das questões climatéricas.
Ficar à chuva ajuda-me a pensar. Não tem que ser propriamente à chuva, também pode ser debaixo do chuveiro, mas é mais difícil de convencer os meus pais a fazê-lo. Eles não compreendem. Não os censuro, eu também não me compreendo nem a eles também muito bem. Estou no processo de compreender. Ficar à chuva ou debaixo do chuveiro é algo que faço sozinho. Ninguém se aproxima, principalmente debaixo da chuva. Sim, é importante para mim estar sozinho para pensar. Pensei que era assim para todos, mas tenho percebido que não é bem assim. Tal como para outras coisas. Tenho andando a descobrir coisas. Cada vez mais. Tenho a cabeça quase a rebentar. Ainda mais do que o habitual. E gostaria de me conseguir concentrar para concorrer para a Universidade. E esta questão do concentrar também é algo que já me acompanha há mais tempo. Muitas vezes à noite não consigo adormecer. Do quarto dos meus pais apenas ouço - Desliga!! Desliga!! Desligo o quê!? pergunto-me. Desligo a cabeça? Não sei desliga-la! E se a desligar, mesmo que acidentalmente, como é que a posso voltar a ligar? Também não sei. E não sei se mais alguém sabe fazer isso! Percebem? É isso que acontece. A minha cabeça não para! E se ao menos eu conseguisse dizer isto aos meus pais!
O facto de estar à chuva, e sim, é estar à chuva e não andar à chuva, até porque eu não ando quando estou à chuva! O facto de estar à chuva faz com que as pessoas pensem que eu não ligo a ficar doente, principalmente com gripe, mas não é verdade. Em primeiro lugar eu não sinto o frio que as pessoas insistem que eu fico ou tenho. E desde sempre que me procuram impingir roupa e mais roupa para vestir, sendo que nem sempre têm em atenção os tecidos. E eu já lhes disse que não tenho frio, assim como não tenho todo um conjunto de outras coisas que as pessoas ficam a olhar para mim. E se eu ficar com gripe isso não é prejudicial, até porque ao fim de três a cinco dias passa. O pior são outras coisas que a maior parte das pessoas nem sequer ligam e acham que eu sou picuinhas e germo fóbico quando me ponho a falar sobre o passar com as mãos em determinadas superfícies, por exemplo. Parece que as pessoas não se informam, e não querem saber e depois acabam por me condenar e rotular de coisas que nem sequer fazem ideia.
Dizem-me que eu devia ir é para Belas Artes, por causa do desenho. Sim, é verdade, eu desenho, desde sempre e muito. Mas as pessoas não percebem que eu não quero fazer isso? Que não quero ir para desenho apenas porque acham que eu sei desenhar!? Eu quero ser meteorologista! Há muitas coisas que as pessoas parecem não me compreender. Pensam que por eu dizer determinadas coisas isso significa que eu sou ou penso assim, mas não, são apenas coisas que eu digo naquele momento, porque as posso estar a sentir!
Entretanto há duas semanas, no decorrer desta questão do diagnóstico do espectro do autismo, tenho ouvido várias coisas. E uma delas curiosamente foi qualquer coisa alusiva ao Rain man. Confesso que fiquei perplexo e assustado pois pensei durante um dia que podiam estar a falar da minha pessoa. Isso às vezes acontece-me. Mas afinal não. E então fui ver o que era isso do Rain man e inclusive vi o próprio filme e todo um conjunto de coisas que já se disse e pensou, seja na altura, mas também ao longo destes anos todos. As pessoas pensam que a chuva é toda igual, mas não é. Assim como as próprias gotas de chuva, também não o são. É um pouco como tudo isto do autismo. Há quem pense que o autismo é isto ou aquilo. Seja porque tem um diagnóstico tal qual eu o tenho, ainda que recentemente. Mas tenho pensado mais insistentemente sobre este tema, é verdade. Outras pessoas dizem que sabem o que é o autismo porque têm familiares com esse diagnóstico. Outros porque têm um autismo mais marcado e outros porque têm um autismo mais subtil, ainda que uns e outros não gostem dos termos usados. Sejam estes ou outros como o mais ou menos funcional, etc.
As pessoas são quem são. E não se trata de um cliché. É um facto. Desde sempre que nos tentamos compreender, e não satisfeitos queremos criar categorias e colocar lá as pessoas, com a ideia de que assim é mais fácil saber onde estão as pessoas e se ali estiverem já sabemos quem elas serão, mesmo sem conversarmos com elas. Absurdo. E isso é feito na saúde mas não só. Lá na escola as pessoas dizem-se dentro deste ou de outro grupo e perguntam de que grupo somos nós e assim que respondemos encolhem os ombros ou sorriem como se soubessem quem nós somos, mesmo sem conversarem connosco. Não basta procurar compreender as pessoas? É preciso agrupa-las?. É preciso agrupa-las de uma forma que elas nem sequer concordam ou foram auscultadas para saber o que acham sobre isso? As pessoas são quem são. E ainda assim nem elas próprias sabem na totalidade o que elas são. Outras descobrem-no já no fim da vida. O autismo não é representado por esta ou aquela pessoa ou conjunto de pessoas. O autismo será sempre mais do que tudo isso e todos nós, tal como qualquer outra coisa na vida complexa dos seres humanos. E continuamos a querer por sim, porque dizemos que acreditamos e que temos de ajudar os outros a acreditar e a deixar de acreditar nestas e noutras coisas. Será que não percebem que isso foi algo semelhante ao que aconteceu com países colonialistas tal como o meu que durante determinado período da sua história andou a conquistar e a evangelizar os povos?! Tal como várias das pessoas autistas que já ouvi dizer que as pessoas não autistas tentam evangelizar as pessoas autistas a se parecem mais como eles o são! Quando talvez na verdade a maior parte das pessoas não autistas possam querer saber o que o autismo é ou pode ser, e ainda assim ficarem assustados durante um tempo depois de saberem um pouco mais o que poderá ser!
As pessoas querem apenas ser pessoas, apenas isso. Querem ser gostadas, ouvidas, validadas, ensinadas, e quando discordadas não querem ser ofendidas, mas sim chamadas à atenção no que estão a dizer e não naquilo que são enquanto pessoa. As pessoas querem ser especiais, não tendo de ser vedetas ou estrelas. As pessoas querem saber que podem errar sem que isso faça chamar sobre si todas as atenções e alaridos. As pessoas querem chorar sem que sejam julgadas ou que julguem que vão querer morrer ou sofrer. As pessoas querem passar despercebidas em algumas vezes e decidirem o que querem fazer mesmo que alguém possa pensar de uma forma diferente da sua. As pessoas querem ser pessoas. E se há um diagnóstico ninguém tem nada a ver com isso. Cabe apenas ao outro ouvir e respeitar. Isso mesmo, cabe apenas ao outro ouvir e respeitar. Era o que faltava ter uma pessoa qualquer e que na maior parte das vezes não me conhece nem sequer faz questão de me conhecer a dizer isto ou aquilo de mim. Era o que faltava. Se ao menos conseguisse dizer isso às pessoas!? Se eu sou autista, cabe-me a mim procurar dentro de mim e na relação com os outros e com o Mundo quem eu sou. Eu sou dono do meu destino e da minha vida. Nem os meus meus pais e muito menos ninguém é dono da minha vida. Ouviram!? Era bom que me ouvissem. Era bom que eu conseguisse falar isto para as pessoas! Talvez um dia. Até lá mais vale ir escrevendo. Sempre posso voltar a ler quando tiver dúvidas e talvez um dia deixe que os outros leiam e me leiam!
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