"- Peço desculpa, não posso preencher o questionário.", disse Carlos (nome fictício) com toda a sua certeza. "- Porquê, houve alguma coisa que não percebeu?", ouviu-se a aplicadora a perguntar. "- Houve sim. Não percebo porque apenas tem as opções de masculino e feminino!". Carlos, 36 anos é autista e é não binário. O caso do Carlos e de outros tem sido reportado com mais frequência. Algumas pessoas que estão a recorrer às consultas de especialidade para realizarem o processo de transição, enquanto pessoas transgénero e intersexos apresentam alguns traços do Espectro do Autismo. Atendendo à fragilidade de ambas as situações e ao facto de se encontrarem em maior probabilidade de sofrimento. É fundamental que possam receber assistência nas áreas de saúde mental (acolhimento, avaliação clínica, aconselhamento e psicoterapia), mas também tratamentos hormonais e intervenções cirúrgicas. Isto para que enquanto pessoas com diversidade de género mas também com Perturbação do Espectro do Autismo possam adquirir um bem-estar duradouro com a sua identidade de género.
Um em cada cem adultos tem uma Perturbação do Espectro do Autismo e um em cada cinco mil tem uma Disforia de Género. O autismo é uma perturbação do neurodesenvolvimento caracterizado por um compromisso na interação e comunicação social e com comportamentos, interesses ou actividades restritas e repetitivas. A Disforia de Género é caracterizada pelo sofrimento afectivo e cognitivo que pode acompanhar a incongruência entre o género experimentado ou expresso e o género designado de uma pessoa ao nascimento.
Muitas pessoas que experimentam a Disforia de Género querem mudar a sua aparência e / ou características corporais para serem mais congruentes com sua identidade de género. As pessoas podem solicitar um processo de transição que pode abranger uma variedade de etapas, desde a transição social até a terapia hormonal e cirurgias que afirmam o género.
Apesar de ambas as condições serem raras e caracterizadas por critérios diagnósticos distintos, há um conjunto de investigadores e clínicos que têm vindo a descrever na literatura a co-ocorrência de ambas as condições. E têm reportado uma incidência significativamente maior que a esperada de autistas/características autistas em populações de clinicas de género. Por exemplo, 6,4% das crianças e 9,4% dos adolescentes encaminhados para Disforia de Género e 5,5% dos adultos apresentaram níveis clinicamente significativos de traços autistas.
Uma questão emergente na intersecção entre a Perturbação do Espectro do Autismo e a Disforia de Género parece ser o binómio conflito-congruência. E isso parece estar no cerne da experiência de Disforia de Género em adultos com autismo. Nomeadamente, quem tentou realizar uma transição social e física. Quando se tem autismo, é um conflito multifacetado que se estende além do descritor de diagnóstico, compreendendo o conflito com o corpo; conflito interpessoal; e conflitos psicológicos ou intrapessoais. A resolução de conflitos e a procura da congruência informam sobre as experiências de sentir-se diferente; ocultar e suprimir sentimentos de género e a percolação de sentimentos de género - o desenvolvimento gradual da compreensão da identidade de género. E o Espectro do Autismo pode ser sentido mesmo como uma barreira.
Carla (nome fictício): "Estas questões com o autismo ficam sempre mais complicadas... é sempre mais complicado com o autismo".
Samuel (nome fictício): “Eu nunca senti que era uma rapariga e nunca ... queria usar roupas femininas ou coisas assim, sempre me vi como um homem ... [eu pensei que] todo mundo era estranho, porque eles viam-me como sendo uma menina."
Paula (nome fictício): “Eu queria ... fazer coisas de raparigas como culinária, mas ... elas tentaram impedir-me. Bem, eu insisti, e eles tentaram impedir-me, mas não o fizeram."
Alexandre (nome fictício): “Os professores separaram-nos quando estávamos nos balneários para nos trocar e eu estava a tentar ficar com os meninos porque me sentia estranho com as meninas. Eu não sabia onde procurar, porque todos os sutiãs e outras coisas ... eu sentia-me estranho".
O impacto do ambiente social é predominantemente restritivo - dificulta a compreensão, a exploração e a expressão da identidade de género, ampliando ou mantendo os sentimentos de conflito sustentados pela falta de aceitação da neurodversidade e pelo domínio da cis-normatividade na sociedade ocidental. Os relacionamentos facilitadores são comumente com membros da comunidade LGBT.
Zé (nome fictício): “A sua experiência do mundo é sempre diferente, por isso está sempre em conflito, portanto, ... eu era visto como algo errado, mas era como se eu não pudesse estar no meio errado, foi realmente debilitante! ... Acrescente a isso o facto de ver o género de maneira diferente e voilá! ... As pessoas autistas podem acabar com doenças mentais porque lhes dizem que a sua verdade não existe e isso é realmente assustador”.
Samuel: “Os meninos não queriam brincar comigo e com muitas meninas ... E também ser autista, é uma faca de dois gumes ... sempre a tentar encaixar-me ... eu também não acho que nenhum deles ajudou com a amizade.".
Rute (nome fictício): “Eu simplesmente não senti que me encaixava em lugar algum, nem com as minhas irmãs, meu irmão, outras pessoas ou até mesmo comigo, é como se todos fossem estranhos e eu fosse o mais estranho de todos ... eu acho ... eu simplesmente não deveria existir ?!"
Muitos descrevem sentir-se diferentes de suas primeiras lembranças de infância. Embora inicialmente não possuíssem os conceitos ou a linguagem para entender e articular os seus sentimentos, isso parecia estar relacionado à interação de suas experiências de género e às dificuldades relacionadas ao autismo. Alguns parecem deixar claro que experimentaram ser um género diferente ou oposto ao atribuído a eles; enquanto outros pareciam ter uma sensação mais nebulosa de haver uma incompatibilidade entre o sexo experimentado e o atribuído.
Carla (nome fictício): "O Autismo torna realmente difícil dizer como me sinto ... Conheço muitas pessoas trans que não têm problemas para expressar as suas emoções e como a disforia as afeta".
Fernando (nome fictício): “existem grandes conflitos entre como você se sente e o que as outras pessoas estão a dizer e como você lida com isso ... você esconde quem realmente é ... você afasta-o mentalmente... porque isso não é bom para a sua saúde mental e pode continuar a bater com a cabeça contra uma parede. A minha mãe teve que me convencer de que eu não tinha mais permissão para andar de topless no verão e eu estava realmente cansada, mas senti-me obrigada a cumprir, devido às expectativas do comportamento de género mais uma vez".
À medida que as pessoas envelhecem, tornam-se cada vez mais conscientes da sua diferença em relação às outras mulheres e homens. A sua experiência de género frequentemente não parece ser compartilhada com outras pessoas, o que aumenta a ansiedade e a sensação de diferença. As famílias dos trans masculinos permitiram haver alguma flexibilidade na infância de que eles se comportassem de forma mais congruente com seu sentido de masculinidade, embora essas expressões permanecessem dentro do papel socialmente aceite. As mulheres trans viram negada a flexibilidade ao experimentar ou expressar a feminilidade. Algumas revelaram pensamentos de serem do sexo feminino para a família, e foram ridicularizadas ou castigadas.
Carla (nome fictício): “Fiz alguns amigos que gostavam muito de ser abertamente femininos e abertos a respeito de roupas e outras coisas, o que me ajudou a experimentar roupas e looks ... então, ser aceite em grupos de amigos ajuda muito ... através deles eu pude ser a pessoa que eu queria ser."
Rita (nome fictício): "O que realmente me deixa com medo é ... ter descoberto o que são amigos, agora existe esse medo de perdê-los ... ficar sozinho de novo". Estamos a conhecer novas pessoas, ...por diferentes razões e isso dá-nos uma sensação de pertencer a um propósito."
Samuel (nome fictício): "Eu sempre gostei de colecionar brinquedos; O meu pai disse-me uma vez "se você ainda brinca com brinquedos ... então você não é maduro o suficiente para tomar essas decisões sobre o género / transição... ele pensa por causa dos meus interesses que eu não sabia sobre o meu sexo ...! ". Desde que fui assim, fiquei mais feliz ... Quanto mais feliz sou, mais envolvido me vejo e mais me quero envolver..."
Alexandre (nome fictício): "O autismo apenas tornou a experiência mais stressante ... o que vai acontecer, o que vai ser dito, o que vai acontecer a seguir? ... eu quase não fui". Eles não disseram directamente, mas eu senti que, porque eu tinha Asperger, eles não me levariam muito a sério ... Eu desmoronei ... e não consegui recuperar."
Carla (nome fictício): "Tenho a impressão de que eles estão a procurar comentários muito específicos sobre meu corpo, mas simplesmente não sei ... é difícil de explicar... ele discutiu todas as razões pelas quais eu me sentia desconfortável com a terapia hormonal ... os prós e os contras. Pesquisei bastante e preparei-me ... eles faziam perguntas para que você soubesse sobre as mudanças que viriam a ocorrer com os hormonas. Mas eu realmente não tinha processado o que significava isso e que aconteceriam comigo .. a puberdade já tinha sido uma época realmente horrível e eu voltei a tê-la novamente ”.
Carla (nome fictício): “Espero que a transição alivie alguma da ansiedade social em torno dos papéis e expectativas de género ... embora isso me leve de volta ao conflito ... que a transfobia e a discriminação de género não deveriam existir ... a ideia de entrar num sistema opressivo é realmente difícil para mim, não deveria haver essa opressão em primeiro lugar!"
Samuel (nome fictício): “Eu tenho sentimentos contraditórios sobre ser trans ... Não estou feliz por ter nascido menina, mas estou feliz por me dar uma grande compreensão de mim mesmo e ser capaz de simpatizar com as pessoas, ... pessoas ... como se eu fosse alguém a olhar de fora, poderia não ser tão solidário ... acho que me torna uma pessoa melhor por ter que trabalhar para ser a pessoa que sou ”.
Fernando (nome fictício): "As pessoas pensam que você segue um determinado caminho e que você fez a [transição física], e de que vive feliz para sempre, mas é um processo ao longo da vida de navegar no seu ambiente".
Carla (nome fictício): "Acho difícil pensar em mim como 'autêntica', mas apresento-me como tal. Eu sinto-me falso. Eu realmente espero que isso mude ... mas esse sentimento está profundamente arraigado. Provavelmente vou ter que viver com isso."
A Perturbação do Espectro do Autismo aqui pode ser sentida duplamente como protectora ou uma barreira impeditiva de algo. O autismo parece complicar o processo de compreensão e tratamento de questões de género, assim como ao acesso a relacionamentos de apoio e facilitação. Uma vez realizada a transição, o autismo também teve impacto na representação da sua identidade de género autentica, deixando alguns sentirem-se vulneráveis ou virem a ser maltratados e / ou prejudicados. Não obstante, o autismo também ofereceu um certo sentido de proteção contra as expectativas e o preconceito da sociedade, pois pareciam não ter consciência deles ou acostumaram-se ao impacto da discriminação relacionada ao autismo e, portanto, desafiaram os costumes relacionados ao género.
Comments