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Eu já me abraçava há muito tempo

Foto do escritor: pedrorodriguespedrorodrigues

Em criança costumava ouvir muito esta frase - Se nós não gostarmos de nós próprios quem é que haverá de gostar de nós?! disse Clara (nome fictício), mulher autista de 48 anos. Não percebia muito bem o que é que queriam dizer com isso, até porque ouvia esta frase em várias e diferentes situações. Fosse em casa, escola ou na rua com os colegas - Se não gostares de ti própria quem é que haverá de gostar de ti?! Então a determinada altura, ainda que sem perceber muito bem comecei a ler um livro de auto-ajuda - Como gostar de si - Estratégias para usar no quotidiano, estava escrito na capa. Tinha uma foto de uma mulher a dar um abraço a si própria e sorria! disse Clara. A primeira coisa que procurei fazer foi isso mesmo - dar um abraço a mim própria. Afinal de contas não haveria de ser uma coisa difícil. Até porque via as pessoas a fazerem-no constantemente. Ainda que eu não tolerasse que me abraçassem. Era desconfortável. Ainda mais porque havia pessoas que demoravam muito tempo a dar o abraço e mexiam-se enquanto abraçavam e isso ainda era pior. Mas ser eu a dar um abraço a mim própria não deveria ser tarefa difícil, pensava. Mas enganei-me. Primeiro não sabia se estava a fazer como as pessoas normalmente fazem. Então dediquei-me a olhar para um conjunto de pessoas que sei que abraçam com frequência para tentar perceber como haveria de fazer. Mas era difícil pois todas elas faziam bem diferente umas das outras e até mesmo diferente em situações igualmente diferentes e com pessoas diferentes. E ainda pior era quando abraçavam de formas diferentes com a mesma pessoa e em situações diferentes. Como podem perceber, a tarefa de me abraçar iria demorar um pouco mais o que tinha previsto inicialmente, mas a minha vontade em poder aprender a gostar de mim, até para que os outros soubessem e pudessem gostar de mim era uma missão. Na altura eu tinha 12 anos. Tinha sido diagnosticada com Síndrome de Asperger. Na altura era assim que se chamava. Não agora, mas as questões são as mesmas, refere Clara. Depois não sabia se estava a apertar muito ou pouco no abraço. Para mim não era desconfortável e por isso continuava a apertar. Ao ponto de quase conseguir tocar com as pontas dos dedos umas nas outras na parte de trás das minhas costas. Isto também porque na altura perdi muito peso por causa da minha restrição alimentar. Ainda que os médicos teimassem em dizer que era anorexia. Eu já tinha lido um livro que o meu pai tinha em casa sobre o assunto. Ele é médico e por isso esses e outros livros empilhavam-se lá por casa. E do que eu li não era nada de anorexia. A questão é que todo este processo do abraçar-me estava muito demorado de aprender e decidir que podia avançar para outras coisas. E no entretanto o gozo e troçar lá na escola não parava. Na altura isso não se chamava bullying. Apenas mais recentemente é que dizem que eu fui vitima de bullying. Assim como dizem que agora eu tenho um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. Mas o certo é que durante todo este tempo fui sendo gozada, humilhada, maltratada, desrespeitada, não aceite e não compreendida pela grande maioria das pessoas. Fossem elas colegas da escola, faculdade e agora mais recentemente do trabalho. Mas também professores e até algumas pessoas da minha família. Só por isso podem perceber que aquela situação de aprender a me abraçar a mim própria e de passar a gostar de mim mesma demorou tanto tempo que todas estas coisas negativas e horríveis se foram passando. E agora mais recentemente quando mudei de terapeuta e me vieram falar de auto-compaixão é que me voltei a lembrar de tudo isto! refere Clara. Na altura apesar de fazer terapia comportamental e cognitiva, não se falava de nada desta questão da auto-compaixão. Mas ao que parece ultimamente isso parece ser mais consensual, acrescenta Clara.


De uma maneira global podemos dizer que a auto-compaixão se refere à capacidade de oferecer compaixão a si próprio no meio de fracassos pessoais ou dificuldades externas. E ultimamente tem havido todo um conjunto de trabalhos de investigação para poder tentar demonstrar a eficácia e mais valia terapêutica da auto-compaixão enquanto modelo de intervenção naquilo que é referido com terapias de terceira geração.


A Clara, assim como algumas outras pessoas autistas podem ajudar-nos a compreender o quanto importante pode ser a implementação desta metodologia na intervenção. Mas também nos podem informar do quanto desafiante estes pressupostos podem ser para si, a forma como pensam e sentem as coisas, relações, a si próprios e o Mundo.


A auto-compaixão, poderá ser compreendida como esta capacidade/possibilidade de sermos gentis connosco próprios (bondade), estarmos conscientes dos nossos sentimentos e pensamentos (consciência consciente) e de percebermos que toda a gente sente dor e comete erros (humanidade comum). Sendo uma forma saudável de nos relacionarmos connosco próprios que se baseia na bondade e não na autocrítica; na consciência consciente ao invés da identificação excessiva com emoções negativas; e da humanidade comum em vez de isolamento. A auto-compaixão torna-se saliente em momentos de percepção de fracasso ou de sofrimento geral e molda a forma como a pessoa reage a essas dificuldades. Por exemplo, se um gerente de supermercado dá a um empregado seu um feedback negativo sobre a forma como lidou com um cliente difícil, uma pessoa com baixo nível de auto-compaixão poderá pensar algo como - Não tenho jeito nenhum, sou sempre péssimo com os clientes e provavelmente vou ser despedido! Ou seja, esta crença nuclear do seu perfil de funcionamento é mais frequentemente desvalorizada em relação à sua pessoa (self). No entanto, uma pessoa com maior nível de autocompaixão pode reagir ao feedback negativo de forma mais adaptativa. Pode tirar um momento para se acalmar e fixar a sua consciência no corpo (i.e., mindfulness) e utilizar uma linguagem mais auto-confiante em relação a si própria, pensando algo como - Não faz mal, toda a gente comete erros de vez em quando (i.e., humanidade comum), posso ser bondoso comigo próprio (i.e., auto-bondade). Em comparação com a autocrítica, as respostas de autocompaixão como esta reduzem a activação das redes neurais associadas à ameaça, incluindo a redução da ativação de determinadas áreas neuronais (e.g., amígdala e do cíngulo anterior), e que têm demonstrado prever de forma positiva a resiliência.


Como é que eu podia ser gentil comigo? pergunta Clara. Em primeiro lugar pensava no que é que seria isso de ser gentil, continua. Essas e outras palavras e conceitos sempre foram mais subjectivos. E podia ser muitas coisas e como tal eu nunca chegaria a uma só ideia do que seria ser gentil, refere. Mas depois, como é que podia ser gentil comigo se ao longo destes anos eu não senti que as pessoas o foram comigo? questiona. As pessoas estão à espera que apesar de não terem demonstrado a sua gentileza para comigo que eu a pudesse aprender? Isso funciona assim com as outras pessoas? Porque daquilo que eu consigo perceber isso não é bem assim, e não se trata apenas das pessoas autistas! desabafa. Ao longo destes anos conheci pessoas que sofreram traumas e maus tratos relacionais continuados e também são assim, incapazes de serem gentis com eles próprios. Como tal não é apenas comigo. Ainda que comigo isso seja muito difícil, acrescenta. E como é que podia estar consciente dos meus pensamentos? volta a questionar. Principalmente quando a minha cabeça sempre teve um conjunto tão grande de pensamentos, ao mesmo tempo e ao longo do dia e da noite também! diz. Ao ponto de desconfiar a determinada altura se não teria também uma PHDA, confessa.


Claro que eu gostaria de ser mais gentil comigo própria! diz. Racionalmente consigo compreender os benefícios de o ser! É lógico que a minha ansiedade e depressão estariam menos presentes se o conseguisse fazer ao longo destes anos! continua. Mas as pessoas continuam a dizer que se eu for assim então não posso ser autista. Se tiver amigos não posso ser autista. Se olhar para a cara das pessoas não posso ser autista! E também é obvio que não ter sido uma pessoa autocritica também levaria a pensar em mim de forma mais positiva! acrescenta. Ainda que pense que várias vezes o tal auto criticismo tenha mais a ver com a minha forma mais assertiva e realista de olhar para as coisas e para as pessoas, inclusive para mim própria. Mas ainda assim certamente que teria sido mais benéfico para mim. Assim como teria sido mais benéfico que as pessoas à minha volta ao longo de quase 50 anos da minha vida tivessem sido diferentes. Me tivessem aceite por quem eu sou. Que não me quisessem mudar sem que eu soubesse ou percebesse o que tinham em mente. Que pudessem gostar da forma única e singular como sou, para que eu também aprendesse a fazer como eles. Afinal de contas, não é assim que as crianças aprendem? pergunta de forma retórica. Se calhar deveríamos todos fazer esta terapia de terceira geração relacionado com a auto-compaixão e aprendermos a nos aceitar. Talvez assim não vivêssemos frutados e com mal estar e com isso soubéssemos e pudéssemos aceitar os outros como eles são e vivêssemos todos melhor! Não achas? pergunta-me.


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