Amanhã é final do ano!, diz-lhe ele. Não, amanhã é dia 31 de dezembro!, retorquiu ela. Sim, precisamente e por isso é final do ano!, insistiu. Não, amanhã é final do mês de dezembro!, devolve-lhe ela. Ele é o Paulo (nome fictício). Ela é a Carla (nome fictício). Ele já foi a Joana. A Carla já foi Bipolar e Obsessivo-Compulsiva. Ele também já foi anti-social. Ele é o Paulo e ela a Carla. Já lhes perguntaram se namoram. Ambos encolhem os ombros e olham para o outro para ver o que responde. Ele diz que não sabe o que significa isso, o de namorarem. Ela diz que já leu o suficiente sobre o assunto e diz que a sua relação não se encaixa. O Paulo diz que gosta dessa definição - um namoro que não encaixa! Ainda que não faça sentido, diz logo de seguida. Basta ver como nós nos encaixamos perfeitamente na fotografia. A Carla parece ter uma pequena cova no omoplata esquerdo onde eu encaixo perfeitamente o meu queixo! E ele tem um leve alto nas costas que provavelmente corresponde a uma escoliose e onde eu descanso várias vezes o meu queixo!, diz Carla. Mas afinal o que queres tu dizer com isso de amanhã ser final do ano?, pergunta-lhe ela. Li que se fazem desejos nesta altura do ano, refere-lhe ele. Ao menos tu sabes o que são essa coisa de desejos, e de desejar, ou até mesmo para quê, ou para quem?, dispara-lhe ela rapidamente. Talvez não faça sentido fazer isso dessa forma, suspira Carla. Olha como as coisas no Mundo estão?, continua. Do que te vale desejares as coisas Paulo, se boa parte daquilo que as pessoas parecem desejar tem a ver com os outros?, questiona-o. Talvez te possas desejar a ti, o que achas? Paulo olhou para a Carla. Ficaram assim durante alguns segundos. Não sabem bem quantos, não contaram. E largaram-se no chão a rir. Ficaram assim mais de três minutos e quarenta e seis segundos. O Paulo nunca tinha rido assim tanto. A Carla já lhe faltava o folego. O Paulo que também já foi Joana, apesar de sempre se ter sentido Paulo e a Carla, são ambos autistas. Tal como eles costumam dizer, Temos um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo para alguns, somos autistas para nós! E isso parece-lhes fazer todo o sentido. Há muito que deixei de desejar certas coisas, diz Carla. Em criança passava noites a pedir que as minhas colegas na escola me compreendessem e deixassem brincar com elas. E que os meus professores deixassem de fazer determinadas perguntas e me obrigassem a passar as coisas todas para os cadernos. Até cheguei a pedir que os meus pais deixassem de dizer que eu era preguiçosa e carrancuda. Já desejei muitas coisas. Já cheguei a dizer alto alguns desses desejos e nenhum deles se concretizaram. Um dia ouvi dizer que os desejos não se dizem em voz alta, caso contrário não se concretizam. Achei aquilo um absurdo. Foi a gota de água, e deixei de desejar o que quer que fosse, conclui. Aquilo que eu mais deseja já tenho, diz Paulo. Tenho-me a mim, ao Paulo. Mas desejei muitas vezes que não me continuassem a chamar Joana. Ou a perguntarem-me porque é que eu tinha feito aquilo. Como se eu tivesse feito o que quer que fosse. Como se as pessoas fizessem aquilo que são! Desejei que deixassem de andar atrás de mim no recreio da escola e que me atassem latas nas pernas com nós tão fortes que só o meu pai consegui desatar. O barulho era horrível e fugia sem parar. Mas também desejei que o meu pai não fizesse uma carta triste cada vez que ficava a desatar os nós das minhas pernas. Nunca consegui dizer-lhe isso. E depois ele morreu. Desde essa altura também nunca mais quis desejar coisas. Mas este ano li um texto que falava sobre isso. e por isso voltei-me a lembrar dos desejos, conclui o Paulo.
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