Diziam-me que tinha de saber quem eu era! diz Rute (nome ficticio). Mas ninguém me explicava propriamente como é que devia fazer isso, continua. Comecei a pensar que na realidade as pessoas diziam aquilo só por dizer e que na verdade nem elas próprias sabiam quem elas eram. Achava simplesmente que me diziam aquilo porque também lhes tinham dito e como tal também teriam de o dizer a alguém. A certa aultura deixei de ligar ao que me diziam, pois havia muitas coisas, tal como este exemplo, que eu achava que as pessoas diziam coisas apenas por dizer! desabafa.
Um dia pensei que ao usar um espelho poderia saber quem é que eu era, continua. Foi a minha fase do espelho. As pessoas pensavam que eu queria ficar mais bonita e diziam que eu era vaidosa. Não era nem uma coisa nem outra. Na realidade estava a tentar perceber quem eu era. Mas as pessoas não pareciam querer saber e também não me perguntavam e por isso eu também não dizia nada pois achava que as pessoas quando queriam saber perguntavam as coisas, tal como eu também o fazia. Mas as pessoas pareciam fazer diferente, ainda que dissessem um monte de coisas e que depois não as cumprissem ou não fizessem como as diziam. Não percebia, e por isso também desliguei dessas outras coisas que me diziam, refere.
Ao olhar-me ao espelho, tal qual nesta fotografia, via-me ao contrário, naquilo que as pessoas dizem ser visão em espelho. E foi assim que me fui percebendo - ao contrário. Na altura não sabia que era ao contrário. Via-me daquela forma e como tal achava que era assim. Não sabia sequer se era assim que as outras pessoas me viam. Uma vez perguntei lá em casa como é que as pessoas me viam e responderam-me que me viam tal qual eu era. E por isso fiquei com a ideia de que as outras pessoas também me haveriam de ver de forma igual. Ainda que tenha pensado, tal como em tantas outras vezes, que as pessoas dizem um monte de coisas que depois não é bem aquilo que querem dizer ou significar, mas ainda assim ficou essa ideia. E foi assim que comecei a pensar na forma como as outras pessoas me viam - tal qual eu era. E se eu me via ao contrário, também os outros me viam ao contrário. Mas qando enntei na escola comecei a ouvir várias vezes que eu era estranha e que as pessoas não compreendiam porque fazia as coisas de certa forma e porque é que eu era daquela maneira. Mas eu só pensava que as pessoas me viam tal qual eu era. Mas se assim o era porque razão elas não percebiam o porquê de fazer as coisas daquela minha maneira? perguntava-se. Mais tarde li que isto tinha a ver com a Teoria da Mente. Para mim foi a minha fase do espelho, conclui.
Tudo aquilo que temos estado a falar até então tem a ver com o auto-conhecimento (self awareness). Ou seja, a capacidade que temos de percepcionar e compreender as coisas que nos fazem ser quem nós somos, incluindo a nossa personalidade, acções, valores, atitudes, emoções e pensamentos. E por aqui podemos entender que esta questão do auto-conhecimento é fulcral para qualquer um de nós e ao longo de toda a vida. Mas tal como nas partilhas da Rute podemos perceber, as pessoas autistas têm todo um conjunto de desafios e obstáculos neste processo. E muitos deles não se prendem desta forma singular apenas com as suas características, mas antes com a interacção destas com as outras pessoas e a formas como elas entendem (ou não) aquilo que estão a observar nas pessoas autistas.
E também por isso, historicamente, as pessoas autistas têm sido descritas como incapazes ou pouco capazes de desenvolver um sentido mais profundo de auto-consciência ou auto-conhecimento, e como tal, a compreensão autista da auto-consciência tem sido largamente ignorada. Nomeadamente, em detrimento da identificação/diagnóstico do autismo, do treino das competências sociais nas pessoas autistas, etc. E ainda que sejam todas estas e outras questões aspectos fundamentais a serem investigados e trabalhados com as pessoas autistas ao longo da vida. É fundamental compreender que a cola que une e consolida todas essas aprendrendizagens e treinos ao longo da vida é este auto-conhecimento. Caso contrário, corremos o risco de ser uma informação aprendida como tantas outras ao longo da vida, quando na verdade deverá ser algo que sirva para construir e estruturar quem a pessoa é e deseja ser.
Gostaria de sublinhar que este auto-conhecimento na pessoa autista se deveria alargar para lá daquilo que também já vai sendo feito e que diz respeito ao autoconhecimento da pessoa autista no momento do seu diagnóstico e no período subsequente. Sendo claro que é um período fundamental para todo o processo, mas não é o único e porventura não será o mais importante. Até porque precisamos de compreender e de poder validar aquilo que a pessoa autista já vinha fazendo em relação a este seu auto-conhecimento antes mesmo de ser diagnosticada.
Além disso gostaria de sublinhar que este auto-conhecimento também não se deveria esgotar na compreensão daquilo que são as suas carcaterísticas, nomeadamente aquelas que mais respeito dizem ao seu diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. Mais uma vez, ainda que seja fundamental a pessoa poder tomar conhecimento e consciência das mesmas e destas ao longo do seu desenvolvimento, até porque se vão alterando. E precisamente por isso, também é importante pensar no auto-conhecimento que se vai desenvolvendo na interacção destas suas características e outras na forma como a pessoa autista observa, pensa, sente e age em relação ao Mundo. E posteriormente como é que a informação que lhe é devolvida vai servindo para esta construir o seu auto-conhecimento.
Caso contrário corremos o risco, e muitas vezes corremos, de olhar para a pessoa autista e todo o seu Ser de uma forma coartada e diminuida. E na verdade, essa forma como muitos de nós o faz vai sendo aquilo que vai sendo devolvido, directa e indirectamente à pessoa autista. E como tal, não é de espantar que várias pessoas autistas se sintam coartadas e diminuídas.
Para além do mais, quando os próprios manuais de diagnóstico e outros, eles próprios referem que as pessoas autistas têm um deficit ou incapacidade na competência de auto-conhecimento, estamos a referir e ainda mais com um certa validade dita cientifica de que as pessoas autistas não têm acesso a este processo. E que em alguns casos o podem ter mas somente através do trabalho clinico feito com outro. E também por isso, quando as pessoas não autistas, nomeadamente profissionais de saúde, observam pessoas autistas que aprensentam auto-conhcimento e auto-consciência da sua pessoa, ficam com a ideia, mais ou menos certa, de que naquele caso não poderá ser ou ter um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo, pois têm a capacidade de se compreender. Tal como acontece com toda uma gama de outras características como o contacto ocular, fazer ou ter amigos, relações amorosas, etc.
É importante pensar que este auto-conhecimento vai implicar na forma como a pessoa se percepciona como capaz, como pessoa, o que vai ao encontro daquilo que falamos de auto-estima. Mas também daquilo que a pessoa perspectiva e projecta para o seu quotidiano e projecto de vida futura, seja ao nível pessoal, social e relacional e académico e profissional. Este auto-conhecimento precisa de ser alargado e inclusive ir ao encontro daquilo que são áreas mais desafias e até mesmo sombrias da própria pessoa. Até porque todos nós as temos, mas ainda assim as precisamos de conhecer, contactar a saber viver com elas. Várias vezes as pessoas autistas sentem que ao se começar a auto-conhecer também compreendem que estão a auto-conhecer-se num processo, nomeadamente de intervenção, que por vezes visa a mudança de quem eles próprios são. E não é que determinadas características, pelo menos na forma como são expressas, não estejam a ser prejudicias, inclusive para a própria pessoa. Mas o alerta serve para dizer que fazer um processo de auto-conhecimento quando se está a mudar todo um conjunto de características estruturas do seu Ser é impactante.
Mais tarde na vida deixei os espelhos, até porque era complicado de os levar comigo para qualquer lado! diz Rute. Então passei a usar uma máquina fotográfica. Foi o meu pedido de natal quando tinha oito anos. As pessoas acharam estranho, mas ainda assim lá me ofereceram a máquina. Passei a tirar fotografias e depois a observa-las, disseca-las, edita-las, ou compreende-las. Passou a ser o meu grande interesse. Aquilo que depois vim a saber que era uma das características entre outras para reforçar o meu diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. Tirava fotografias a mim própria, à semelhança do que antes fazia com o espelho. E em determiandas situações tirava a foto a mim e logo de seguida às pessoas com quem estava rodeada e ao contexto. Era a forma que eu encontrava de mais tarde tentar compreender algumas das coisas que se passavam. Algumas das pessoas toleravam aquele meu comportamento, ainda que o achassem estranho. Mas eu também via muitos comportamentos estranhos que eles próprios faziam e eles pareciam nem sequer ligar a eles. E como tal passou a ser mais uma das coisas que eu me desliguei. Mais tarde vim também a saber que a dificuldade em compreender no exacto momento as coisas que estão a acontecer também faz parte do meu diagnóstico. Mas as pessoas nunca compreenderam que isso também acontece porque estou principalmente ocupada em sobreviver e me proteger de todo um conjunto de ataques vindo das pessoas e do próprio ambiente. E como qualquer pessoas não consigo fazer tudo ao mesmo tempo. E por isso tiro as fotos e analiso-as mais tarde. É a minha fase da fotografia. E tem sido assim até então. E já lá vai quarenta e sete anos! exclama a Rute.
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