És sempre a mesma porcaria! Não fazes nada de jeito! Não tomas atenção a nada! É um problema tentar fazer alguma coisa contigo! Nunca queres fazer nada! És egoísta, estás sempre a pensar em ti! Nunca terminas nada! Estás sempre com problemas para fazer alguma coisa! O problema és tu! Toda a gente faz bem, menos tu! Não fazes porque és preguiçoso! Nem sequer tentas!
Diga-me uma coisa, se passasse boa parte da sua vida a ouvir estas e outras frases semelhantes, como se sentiria?
Penso que não conheço uma única pessoa autista adulta que não tenha tido uma infância e adolescência carregada de traumas. Claro que podemos sempre dizer que os pais não tinham conhecimento da condição do seu filho/a e como tal sentiram maiores dificuldades em como fazer as coisas. E que muitos deles procuraram uma resposta e que durante algum tempo não a obtiveram ou a que tiveram não foi adequada. Comer, vestir, tudo o que seja passível de ter alguma coisa a ver com o sensorial é causador de algum tipo de sofrimento nas pessoas autistas. Vestir certas roupas mais ou menos apertadas e com certas texturas. Dar de comer determinados alimentos igualmente com certas texturas, sabores e odores. A primeira infância por si só pode ser bastante traumática para uma criança autista. Mas não fica por aqui!
E o que dizer da Escola, seja dos doze anos de escolaridade obrigatória, mais o tempo de Creche, Jardim de Infância e Pré primária? E tamébm aqui poderiamos dizer que muitos educadores e professores poderão não estar sensibilizados e formados para trabalhar com estes alunos. E que em tantas outras situações também não estão a compreender que o aluno/a seja autista. Fazer as brincadeiras daquela determinada forma. Ser tocada com mais ou menos frequência quando para si é intolerável. Ter de fazer as actividades por uma ordem que não lhe faz sentido. Estar imersa num tanque de sensações que a confundem e magoam. E depois mais tarde ser apressada a passar as coisas do quadro quando a sua caligrafia é mais dificil de produzir. E ainda assim há quem lhe diga que é horrível e que ninguém consegue ler aquilo. E se soubessem que o aluno nem sequer lhe faz sentido passar as coisas para o caderno sendo que tudo aquilo já se encontra no seu livro. Ou quando lhe dizem que não faz sentido não aprender aquela matéria quando tem capacidade para saber todas as outras. Ou que parar quieto não é uma questão de dificuldade, é como a pessoa é.
E os colegas? Principalmente aqueles que não os compreendem e que por causa disso fazem troça de si. Ou lhe batem, tiram fotografias e fazem vídeos e partilham nos grupos para todos se rirem. E ainda mais aqueles que percebendo ou não o que se passa não dizem nada para os proteger. E ficam impávidos a assistir, ou vão-se embora porque a vergonha os irrita.
Poderia continuar os exemplos, mas penso que todos perceberão. O certo é que a adversidade na infância tem sido estabelecida na literatura como um preditor de má qualidade de saúde física e mental observada na idade adulta. Mas também de pior qualidade de vida e agravamento das condições de saude fisica e mental em crianças e jovens. E para além de todos os exemplos fornecidos, não esquecer as adversidades causadas pela pobreza, condições de saúde agravadas, morte de familiares, exposição à violência, etc. E como podem perceber nem sequer foi necessário falar do COVID.
Sempre me odiei. Nunca me conheci de outra forma. Sou feito de ódio. Não me deram nada mais, diz Júlio (nome fictício) de 34 anos. Não me ensinaram a conhecer, saber quem eu sou. Queriam que aprendesse as coisas da escola sem eu saber de mim, diz Telma (nome fictício) de 45 anos. Se há palavra que me define é problema. Tudo em mim é um problema. É o que eu melhor sou, diz Manuel (nome fictício). Não sei se a minha ansiedade veio antes ou depois? Passei a temer tudo, até a recear-me. E depois veio a depressão. Não queria nada daquilo. Apenas se instalou em mim e nunca mais saiu, diz Raquel (nome fictício). Como é que eu poderia ser alguma vez quem eu realmente era? Sempre que o tentei as pessoas negaram-me e disseram que eu era um problema. Passei a ser outro alguém durante anos. Já não magoava ninguém ou era um problema para os outros. Passei apenas a sê-lo para mim. Quase morri. Por pouco não me matei. Agora consigo ser eu mesmo. Os outros que se encaixem, diz Tomás (nome fictício).
Porquê o orgulho autista?
Porque enquanto a adversidade influencia o sentido de self e a autopercepção das pessoas. As suas identidades, traços pessoais e singularidade, também contribuem para a sua resiliência. Os aspectos de suas identidades que promovem a resiliência desenvolvem a autocompreensão, atributos pessoais, incluindo a determinação e um sentimento de orgulho.
Talvez, não sei, mas talvez se me tivessem escutado e procurado compreender antes de me terem julgado, a maior parte disto tudo tivesse sido evitado! diz Rafael (nome fictício).
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