Em saúde mental é frequente falarmos sobre o caminho que a pessoa faz enquanto cliente, seja no processo de diagnóstico ou intervenção. O que fez com que a pessoa começasse a desconfiar de algumas das suas características e tivesse procurado esclarecê-las junto de um profissional de saúde? Quais as queixas? O que levou os pais a pedirem ajuda para a sua filha? O que é que a escola notou no comportamento do aluno para o sinalizar? Estas e outras questões são frequentemente analisadas na literatura cientifica. Mas o que pensam os profissionais de saúde sobre isto tudo? Os profissionais de saúde, médicos, psicólogos, terapeutas da fala e ocupacionais, são todos profissionais com uma formação diferente. E isso leva-os a ter uma perspectiva sobre o processo de avaliação e intervenção diferente. Além de serem todos eles pessoas diferentes e com experiências de vida igualmente diferentes. E ainda assim precisam de tomar uma decisão diagnóstica. E o que dizem eles sobre tudo isto? Que desafios sentem? E dificuldades?
Às vezes deve ser difícil para si estar a ouvir o dia inteiro pessoas autistas, certo?, perguntou-me Carlos (nome fictício). Ouvi dizer que cada vez são mais as pessoas a pedir para fazer avaliação. Deve ser cada vez mais trabalho, não é?, perguntou-me Clara (nome fictício). Nunca teve dúvidas num diagnóstico?, perguntou-me Júlia (nome fictício).
A avaliação de despsite para uma Perturbação do Espectro do Autismo é baseada em critérios diagnósticos descritos no Manual Diagnóstico e Estatístico das Perturbações Mentais (DSM) e na Classificação Internacional de Doenças (CID). E é classifica como uma perturbação do neurodesenvolvimento e diagnosticado quando existem padrões persistentes de dificuldade na comunicação e interação social em vários contextos, combinados com padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou actividades.
Uma avaliação abrangente envolve a consideração de sinais e sintomas essenciais do autismo, bem como um histórico de desenvolvimento, dificuldades comportamentais, funcionamento em casa, educação ou emprego, consideração de diagnósticos diferenciais ou condições coexistentes e sensibilidades hiper ou hipossensoriais e atenção aos detalhes.
Isso tudo anteriormente referido é obtido por meio de observação directa, entrevista, consideração de evidências documentais e, quando apropriado, é utilizado uma ferramenta formal de avaliação. Estas ferramentas de diagnóstico são utilizadas na prática para permitir a observação de comportamentos, bem como obter uma compreensão das preocupações, experiências e história do cliente / família, com foco nos critérios da DSM / CID.
Algumas das ferramentas mais commumente usadas incluem o Autism Diagnostic Observation Schedule (ADOS-2) e uma ferramenta de entrevista clínica, como o The Autism Diagnostic Interview – Revised (ADI - R).
Apesar de haver todo um conjunto de orientações clínicas para a realização de um processo de avaliação no Espectro do Autismo. Este diagnóstico apresenta todo um conjunto de desafios particulares para os profissionais de saúde. Até porque não há biomarcadores utilizados para este diagnóstico. Além de que esta condição representa um grupo bastante heterogéneo de condições, com vários níveis de gravidade e expressão de sintomas. Sendo que os sintomas que são comuns ao autismo podem ocorrem com outras condições, levando à existência de uma maior ambiguidade ao observar os comportamentos. O processo de diagnóstico, é portanto, complexo e multifacetado e pode ser particularmente desafiador quando os casos são considerados ‘limítrofes’ ou onde há condições coexistentes.
Não sendo conhecido a situação vivida em Portugal, mas alguns profissionais de saúde de outros países, nomeadamente naqueles em que existe um apoio social fornecido quando há um diagnóstico de autismo, tem sido apontado a existência de alguma pressão para o diagnóstico e viabilização do acesso aos serviços. Principalmente em situações em que havia dúvidas por parte de alguns dos profissionais na atribuição do diagnóstico.
Um outro aspecto prende-se com os diferentes profissionais de saúde envolvidos e o modelo usado. No diagnóstico psiquiátrico, os médicos adoptam um modelo holístico "biopsicossocial". o que significa que uma ampla gama de factores de risco ambientais, psicológicos, biológicos e sociais são considerados. Mas apesar dessa abordagem biopsicossocial na prática clínica, os médicos podem tender a adoptar uma abordagem mais biomédica ao comunicarem com os seus clientes. Sendo que esta prática assume outra configuração quando estamos a falar de psicólogos, em que o modelo principal é o biopsicossocial.
Outro desafio no diagnóstico é a diferença na maneira como os clientes e os profissionais de saúde interpretam e entendem os sintomas como autistas ou não, levando à tensão cliente-profissional.
A pressão institucional, e principalmente naqueles profissionais que estão a trabalhar em contexto hospitalar, e mais especificamente público, é uma realidade. Seja porque o número de pedidos para avaliação são cada vez maiores. Mas também porque os recursos disponibilizados para as realizar não aumenta de forma proporcional. O tempo de espera para a realização de uma avaliação de despiste de Perturbação do Espectro do Autismo é grande, e isso acresce na pressão causada nos próprios profissionais de saúde.
Um outro aspecto saliente na narrativa dos profissionais de saúde nesta área passa pela importância que tem para eles de fazer com que o diagnóstico faça sentido. Os profissionais de saúde entendem o diagnóstico em termos de se criar uma história ou narrativa diagnóstica coerente, entrelaçando os resultados de várias facetas diferentes do processo de avaliação. Geralmente adoptam uma abordagem diferenciada para avaliação e diagnóstico, com uma apreciação do significado do diagnóstico para seus clientes e suas famílias. No entanto, eles também estão fortemente cientes da necessidade de gerir interesses conflitantes e narrativas do cliente / família: o conhecimento de que os clientes e familiares podem não partilhar da sua compreensão das dificuldades ou concordar com o resultado da avaliação.
Ouvimos frequentes queixas dos clientes referente ao processo de avaliação de despiste de Perturbação do Espectro do Autismo. Seja pelo tempo de demora no processo, mas também pela própria dificuldade na compreensão dos resultados obtidos. Tenha sido efectivado o diagnóstico ou não. E também é habitual ouvirmos queixas por partes dos profissionais de saúde, principalmente em relação aos recursos ou falta destes. Mas independentemente destes desalinhar no processo em si, e na narrativa e compreensão do mesmo, é importante sublinhar que da parte dos profissionais de saúde há uma consciência real das necessidades que urgem ser respondidas e melhoradas.
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