Cada vez que vou ao meu médico de família ele raramente levante a cabeça quando está a falar comigo? diz Susana (nome fictício). Olha, se calhar está no espectro do autismo, já pensaste? diz-lhe Susete (nome fictício). Susana ficou a olhar para a prima incrédula. Andas a ver muitas séries, só podes! exclamou. Se te referes ao The Good Doctor, já vi uns quantos episódios e sinceramente a personagem parece representar pouco daquilo que será o espectro do autismo! retoma Susete. E o outro que andava sempre a dar cabo da cabeça dos internos? perguntava-lhe Susana. O Doctor House? perguntou-lhe. As dificuldades desse eram outras! remata-lhe. Olha, eu é que não sei, diz-lhe Susana. O único doctor que cheguei a ver foi o Doctor Who na década de 70. E mais tarde vi a série de Retalhos da Vida de um Médico do livro do Fernando Namora! acrescenta-lhe.
Este breve diálogo entre a Susana e a prima Susete serve de introdução para falarmos sobre o espectro do autismo num grupo especifico de pessoas, os médicos. Isso mesmo, leu bem! O diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo, para além de ser uma condição que ocorre ao longo da vida. Também tem um espectro de variabilidade suficientemente vasto. E num dos seus polos, naquilo que antes de outubro de 2013 se designava de Síndrome de Asperger ou Autismo de Alto Funcionamento, e hoje se refere como Perturbação do Espectro do Autismo (nível 1), encontramos algumas pessoas que se enquadram nesse grupo especifico - os médicos.
Muitas vezes, o espanto de muitas pessoas relativamente ao diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo num médico, prende-se com o estereótipo face ao que pensam ser o autismo. E muitas pessoas continuam a pensar que as pessoas autistas não são competentes. E aquelas que o possam ser são completamente desajeitadas do ponto de vista social e relacional. E isso serve para os médicos, e para tantos outros profissionais de saúde e outras áreas especificas do saber (e.g., engenheiros, advogados, contabilistas, cientistas, professores, etc.).
Desde que me recordo, não tenho ideia de nunca me ter sentido encaixado dentro de nenhum grupo! diz Alberto (nome fictício), médico com um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo (nível 1). Mas as explicações que me foram sendo dadas pareciam fazer sentido, acrescenta. Eu sempre fui muito dedicado à escola e às aprendizagens de uma maneira geral. Não queria saber de mais nada é verdade. Mas também parecia não haver nada ou ninguém que fosse desafiante o suficiente. Os miúdos apenas queriam andar a jogar à bola, a correr e namorar! E eu queria aprender! continua Alberto. Desde muito cedo que disse que queria ser médico. Na minha família ninguém era médico ou sequer tinha feito o Ensino Superior. Os meus pais sempre disseram que eu tinha de estudar muito para o conseguir. E foi isso que eu fiz. Dediquei-me a estudar. Mas na verdade não senta falta de estar com as pessoas! conclui.
Podia ter tido uma carreira médica de excelência, diz Rute (nome fictício) médica e diagnosticada com uma Perturbação do Espectro do Autismo. As minhas maiores dificuldades sempre foram as questões sensoriais. As questões da interacção e da socialização foram também estando presentes até bem tarde, mas eu depois comecei a aprender a como estar nessas situações! refere. Mas as questões sensoriais nunca as conseguir contornar! desabafa. Estar no hospital era simplesmente horrível. No internato foi simplesmente horroroso ter de estar num espaço inundado de pessoas em que todos falavam ao mesmo tempo, uns mais alto do que outros. E as luzes sobre a minha cabeça pareciam simplesmente cegar-me. Foi a pior altura da minha vida. Percebi que não podia continuar e tive de fazer uma escolha - sair da Medicina ou mudar a minha prática clinica. Escolhi a última! disse Rute. Fui para uma aldeia simpática e fiquei a trabalhar no Centro de Saúde. A minha qualidade de vida melhorou substancialmente. As pessoas são boas e não estão sempre a perguntar-me para sair ou coisas parecidas. Respeitam-me e ouvem-me. E se eu passar as minhas férias dentro de casa sem falar com ninguém, ainda há quem diga - Coitada da doutora, está cansada de trabalhar o ano inteiro! conclui.
Hoje em dia, a Autisctic Doctors International, congrega mais de 600 profissionais de saúde da medicina e com um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. E principalmente, este grupo surge para poder ajudar a dar voz a estes profissionais de saúde que tendo um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo, necessitam de um conjunto de acomodações no seu local de trabalho para que consigam trabalhar em condições adequadas. E não, não é o facto de serem médicos que os torna impermeáveis ou invulneráveis a esta condição. E o facto de terem sobre si pressão social sobre o facto de serem médicos, torna porventura mais difícil de poder falar sobre a sua condição entre pares, ou até mesmo com os seus utentes.
Na maior parte das vezes diziam que a minha ansiedade tinha a ver com todo o estudo que tinha de fazer! diz Marcelo (nome fictício) médico psiquiatra e diagnóstico com Perturbação do Espectro do Autismo. Depois mais tarde, explicava a minha ansiedade por todo um conjunto de responsabilidades e actividades no meu quotidiano! acrescenta. Isso e o meu grupo extremamente restrito de amizades! Ao longo destes anos todos tenho dois amigos, e com os quais não falo há cerca de três anos e meio. Eles também são médicos, e fui justificando que o facto de sermos todos pessoas extremamente atarefadas que isso justifica a falta de tempo para a socialização! diz. Mas o sofrimento e a sensação de estar quase sempre partido por dentro é constante. Ainda hoje, mesmo com a intervenção farmacológica para a ansiedade e a terapia. Foram muitos anos assim e penso que isso tem o seu impacto! conclui.
A questão do perfil cognitivo e intelectual acima da média sempre foi escudando muitas pessoas de receberem um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. Mas ele sempre foi tão inteligente, como é que pode ser autista? ouve-se. E quando adicionalmente a isso verificamos que a pessoa tem um perfil de maior internalização e não de externalização, o que acontece é que muitos dos comportamentos de maior agitação e até alguma agressividade estão muito mais contidos. E isso faz com que a pessoa seja mais recatada. E isso não pode ser autismo, ele é tão sossegadinho! ouve-se. E o facto de apenas gostar de uma ou de outra área especificamente é enquadrada dentro da sua enorme capacidade para estudar e interessar-se. Ele vai ser médico psiquiatra ou neurologista e por isso tudo o que tem a ver com o cérebro sempre foi o seu interesse, e por isso nunca se interessou por mais nada! ouve-se. Ou no caso das raparigas que apresentam um fenótipo comportamental ainda mais subtil que muitos dos rapazes no espectro do autismo, ainda se torna mais difícil de se perceber este seu perfil. Ela é tão sossegadinha e a única coisa que faz é estudar. Os intervalos são uma confusão e os outros miúdos apenas querem andar desassossegados, e por isso é que ela ia para a biblioteca ler, e não por ser autista! escuta-se.
Talvez as pessoas pensem que algumas pessoas autistas entram na TARDIS (Time and Relative Dimension in Spacte) e simplesmente são teletransportadas para outro lugar! Se não sabem o que é a TARDIS procurem ver o Doctor Who. Até porque há muitos mais médicos e médicas autistas que não apenas os que se revêm no The Good Doctor.
Comentarios