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Dias do pai

O título não tem erro nenhum, explica Álvaro (nome fictício). É mesmo assim - Dias do pai, reafirma. Tudo começou já faz algum tempo, refere. Álvaro é um contador nato de histórias. Aprendeu a sê-lo. Não sabia o que fazer com todas as histórias que tinha na cabeça e que não havia maneira de saírem dela. Álvaro foi diagnosticado com Perturbação do Espectro do Autismo aos três de anos de idade. Hoje tem vinte e nove. Não há nada que já tenha feito, pensado, lhe tenham contado ou até mesmo visto que Álvaro não se recorde. Viveu atormentado durante muito tempo. O passado perseguia-o, literalmente, não no sentido figurado. Entrou aos três anos no Jardim de Infância. Os primeiros meses foram difíceis. Não parecia ser muito diferente de todos os outros. Cerca de duas semanas antes do dia do pai a sua Educadora disse que iam fazer um projecto e com isso uma prenda para oferecer ao pai. Porquê, perguntei-lhe na altura, disse Álvaro. E a minha Educadora limitou-se a dizer que era por causa do dia do pai. Não percebi na altura e demorei ainda muito tempo para o perceber, continua. Depois fiquei preocupado, até porque para mim fazia sentido ser os dias do pai, não o dia do pai, refere. Nessa altura eu já tinha aprendido o singular e o plural. Nessa altura eu já tinha aprendido a ler e a falar Inglês. Parecia aquela história do Rei Midas, só que em vez das coisas se transformarem em ouro, passavam a memórias, e assim eu aprendia as coisas, olha para mim e encolhe os ombros. E se era para oferecer uma prenda no dia do pai, então é porque seria para oferecer uma prenda nos dias do pai. O primeiro pensamento que tive foi de alguma aflição. Até porque ainda estava para aprender a fazer contas. Mas já sabia que o meu pai há muito tempo que era meu pai, e eu ainda não lhe tinha oferecido nenhuma prenda, o que significava que tinha muitas em atraso. Percebe a minha ansiedade na altura não percebe, pergunta-me Álvaro. Encarei tudo aquilo como uma missão. Havia que calcular há quanto tempo é que o meu pai era meu pai. Tinha de perguntar ao meu pai, pensei na altura. Mas depois demorei um pouco para saber como é que haveria de fazer a pergunta. Até porque eu queria saber uma informação que me ajudasse a perceber de forma exacta os dias em que ele era meu pai. Não podia dar uma prenda a menos ou a mais. As coisas na vida devem ser equilibradas, aprendi cedo num livro de Ciências que andava lá por casa, acrescenta. Há quantos dias é que tu és meu pai?, perguntei-lhe assim, refere Álvaro. O meu pai encarou a pergunta como encarava qualquer pergunta - solenemente. Sentou-se e ficou a olhar, parecia que estava à procura da resposta num sitio qualquer. Apeteceu-me perguntar-lhe para onde é que ele estava a olhar, mas sabia que não se interrompia o pai quando ele estava a pensar. Ele já tinha ensinado a todos lá em casa que assim perdia os pensamentos e depois estes ficavam num sitio qualquer perdidos a navegar na nossa cabeça. Eu não tive dificuldade nenhuma em perceber o que o meu pai explicou na altura, até porque eu sempre senti que era igual, refere Álvaro. Cada coisa que eu via em mim e percebia que o meu pai tinha igual fazia com que eu acreditasse cada vez mais naquela frase - Tal pai, tal filho. Ainda que na primeira vez que a minha mãe o disse eu não tivesse percebido. Depois de muito pensar, o meu pai levantou-se e disse-me - Ora bem filho, tu tens três anos, logo deveria responder que sou teu pai há 1095 dias. No entanto, mais estes dois meses e dezanove dias até março perfaz 1173 dias. Mas não posso esquecer os seis meses em que eu e a tua mãe começamos a pensar em ter um filho. E isso faz com que sejam 1353 dias. E como tu já sabes, o tempo da gravidez da tua mãe foram trinta e nove semanas, o que totaliza 1593. Isso mesmo, refere o meu pai, sempre solenemente, 1593 dias. E foi assim que naquela altura percebi que tinha 1592 prendas em atraso, tirando aquela que já estava a fazer no projecto do Jardim de Infância. Quando expliquei ao meu pai ele disse-me que percebeu perfeitamente e que se fosse ele também teria feito igual. Era mais uma evidência da tal frase - Tal pai, tal filho. Anos mais tarde fiz-lhe uma segunda pergunta. Não fazia muitas perguntas ao meu pai, até porque ele ficava muito tempo a pensar nas respostas. Por isso poupava as perguntas para questões muito importantes. Assim, aos 19 anos perguntei-lhe - Há quanto tempo és autista? Ainda hoje ele está para me responder. É que há perguntas que demoram tempo a responder. Eu compreendo perfeitamente isso, até porque sou igual ao meu pai, compreendes?, perguntou-me Álvaro.



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