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Destapo-me

- Já vivi 25.550 dias ! disse Carlos (nome fictício) de 70 anos, com diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo e Dificuldade Intelectual e Desenvolvimental. Nunca consegui acompanhar a Sociedade ou ela a mim, e tudo se tornou ainda mais inseguro, ainda mais com as depressões recorrentes. A minha dificuldade intelectual fez-me sentir sempre uma enorme pressão do mundo sobre mim e com a qual nunca consegui lidar. Os meus traços autistas foram tornando-se cada vez mais difícil lidar com as mudanças à minha volta, conclui.


Disseram-me que tinha de ler uma noticia sobre a eutanásia e o suicídio assistido em pessoas autistas na Holanda. Mais tarde quando tive tempo liguei o computador e escrevi no Google Euthanasia assisted suicide autism. A primeira coisa que me apareceu na página da pesquisa foi Ajuda disponível - Fale com alguém hoje mesmo - SOS Voz Amiga - Diariamente das 15h30 às 00h30 - 213 544 545. Não será por acaso que esta informação aparece assim que pesquiso com palavras chave como eutanásia ou suicídio. Estávamos no final de junho. Fui à secção das noticias e a primeira coisa que apareceu foi - Some Dutch people seeking euthanasia cite autism or intellectual disabilities, researchers say.


Li a noticia, uma e outra vez. Voltei a ler em outros dias. Precisava de ler mais coisas, de me informar, mas também de dar tempo a mim mesmo de pensar sobre o tema, o que ele representa para as pessoas, mas também para mim.


Aparentemente a situação investigada na Holanda deu conta de algumas pessoas autistas (5 delas abaixo dos trinta anos de idade), terão apresentado a justificativa de terem um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo e não conseguirem viver a sua vida de uma forma condigna para serem eutanasiados. E os seus pedidos terão sido aceites! Em 2002 a Holanda passou a ser o primeiro pais a aceitar que os médicos pudessem eutanasiar as pessoas a seu pedido, se estas cumprissem todo um conjunto de critérios rigorosos, nomeadamente terem doenças incuráveis que causasse um sofrimento físico e mental atroz e intolerável.


Para além da Holanda, um número crescente de países na Europa e em outros lugares do mundo (e.g., Canadá) admitiu a possibilidade dos cidadãos acederem a modalidades de terminarem a vida. As duas principais formas de o fazer são a eutanásia e o suicídio assistido por médicos. A diferença substancial entre as duas práticas consiste no sujeito que actua. Na eutanásia, é o profissional de saúde que administra geralmente um medicamento letal (e.g., uma injeção ou infusão de uma substância); no suicídio assistido, pelo contrário, o medicamento letal é preparado pelo profissional de saúde e tomado deliberadamente pela pessoa, eventualmente com a ajuda de máquinas em caso de capacidade física reduzida. Globalmente, a eutanásia e o suicídio assistido por médicos podem ser resumidos na definição de morte assistida.


São cada vez mais os estudos científicos que se procuram debruçar sobre o tema e procurar reflectir com todos esta situação. Os avanços da medicina e o prolongamento da esperança de vida têm levantado problemas anteriormente ocultos por uma atitude generalizada de recusa do suicídio. Nas últimas décadas, a prática médica ultrapassou substancialmente o modelo paternalista, reconhecendo a autonomia dos doentes, e a Eutanásia e o Suicídio Assistido por Médicos foi introduzido no sector da saúde em vários países. Neste sentido, é de salientar que vários factores, como as crenças religiosas, factores demográficos, sociais, educacionais e económicos, bem como os níveis de permissividade dos países, têm contribuído para a sua aceitação. Estas questões têm influenciado as iniciativas legislativas, uma vez que existem peculiaridades significativas nas diferentes partes do mundo.


A palavra eutanásia é originária na palavra grega EY-ΘANATO∑ que significa boa morte. Mas apesar de terem passado mais de 3000 anos, o dilema colocado pela eutanásia continua a dividir a sociedade de uma forma geral - uma questão controversa que tem sido debatida na literatura médica, jurídica, filosófica e teológica. Embora a eutanásia ou o suicídio assistido sejam praticados há pelo menos dois milénios, o atual debate académico sobre a morte assistida começou a tomar forma nas décadas de 1950 e 1960. A morte assistida por médicos tornou-se assim, juntamente com o aborto e o abuso da investigação, um dos temas centrais que impulsionam o surgimento da bioética contemporânea. Os profissionais profissionais médicos, filósofos, eticistas, teólogos e juristas geraram uma literatura académica sobre a morte assistida que consiste em centenas de livros e milhares de artigos, escritos em várias línguas. É, no entanto, possível identificar quatro tópicos centrais nos debates apresentados nesta vasta literatura. A primeira destas centra-se nas normas morais que regulam o comportamento dos profissionais médicos e na compatibilidade dessas normas com a morte assistida por médicos. Uma segunda linha neste debate diz respeito à natureza do envolvimento de uma pessoa em na morte de outra pessoa. O terceiro fio condutor dos debates sobre a morte assistida diz respeito à forma como o respeito pela autonomia do paciente e a beneficência determinam a aceitabilidade moral e legal da morte assistida por médicos.


Esta, como algumas outras situações mais fracturantes não tem uma resposta única e consensual, ou sequer estanque no tempo. E como tal, há vários aspectos que vão ao encontro da liberdade de escolha da pessoa. Mas também há todo um conjunto de outros aspectos controversos que se prendem com o facto de estarmos a falar de Eutanásia e Suicídio Assistido por Médicos numa população com uma (ou mais) perturbação psiquiátrica e baixo nível cognitivo e intelectual (QI<70) em alguns casos, e em que ambos estarão a sentir um sofrimento físico e mental intolerável.


Um primeiro aspecto que sobressai passa pela sobreposição entre a doença mental e a ideação suicida, bem como a vontade livre e ponderada de aceder aos serviços de Eutanásia e Suicídio Assistido por Médicos. As perturbações psiquiátricas representam um dos principais factores de risco para o suicídio; por outro lado, o papel médico, social e humano do psiquiatra consiste precisamente no tratamento da psicopatologia, incluindo a ideação suicida, e na prevenção do suicídio. Mas também parece existir uma sobreposição entre as características constitutivas de muitas perturbações psiquiátricas e o critério de intolerabilidade do sofrimento mental. Ou seja, o sofrimento insuportável poderia ser incluído nos critérios de diagnóstico ou de gravidade das perturbações psiquiátricas, em vez de representar a expressão de uma escolha livre e independente. Por exemplo, de acordo com o DSM-5, para a perturbação depressiva major, os pensamentos recorrentes de morte e a ideação suicida, bem como uma tentativa de suicídio ou um plano para cometer suicídio, são considerados características de diagnóstico (critério 9). Na perturbação da personalidade borderline, por outro lado, "comportamentos, gestos ou ameaças suicidas recorrentes, ou comportamentos auto-mutilantes" contribuem para o diagnóstico (critério 5); aspectos de desregulação emocional e comportamental, relacionados com um aumento do risco suicida, são também incluídos como critérios. As pessoas com Perturbação Borderline da Personalidade representam uma percentagem importante de todos os casos de suicídio, com um risco muito maior do que a população em geral, especialmente durante a adolescência e o início da idade adulta. O suicídio e os comportamentos auto-lesivos são também frequentemente relatados noutras Perturbações da Personalidade, especialmente no grupo B. Na perturbação da personalidade narcísica, por exemplo, existe uma necessidade desesperada de proteger a própria imagem de perfeição através da obtenção de uma auto-afirmação externa contínua; o fracasso pode desencadear um forte sentimento de vergonha e humilhação, do qual, por vezes, só o suicídio é reconhecido como uma saída. O risco suicida elevado também está presente na perturbação da personalidade antissocial e, em geral, nas perturbações caracterizadas por níveis elevados de agressividade.


E no autismo sabemos que nos últimos anos tem sido conhecido o número gritante de casos de suicídio e em particular nas mulheres. Nomeadamente, porque as pessoas autistas acumulam todo um conjunto de outras perturbações psiquiátricas e que aumenta a complexidade e a severidade do caso clinico. E o facto de pensarmos nestes números da taxa de suicídio não podemos afastar o nível de sofrimento psicológico associado. Contudo, e no que diz respeito a esta questão da Eutanásia e Suicídio Assistido por Médicos, as pessoas com Dificuldade Intelectual e Desenvolvimental e Perturbação do Espectro do Autismo não estão excluídas de o fazer e receber. O seu direito de o fazer está inclusive em conformidade com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.


Contudo, estes temas mais fracturantes fazem-nos reflectir sobre vários aspectos. Poderá o sofrimento psicológico sentido por uma pessoa autista ser suficiente para solicitar o pedido de eutanásia? E se sim, que nível de sofrimento? E como será ele avaliado? E poderá ser avaliado? Ou precisará de ser avaliado? Até porque se é um direito considerado nas pessoas com deficiência, como fica essa sua liberdade se está a ser colocado estas questões de níveis de sofrimento!? Mas também nos poderá levar a pensar no que precisa de acontecer para uma pessoa autista estar em sofrimento tal que possa desejar solicitar a eutanásia! E se está neste sofrimento, este não poderia ser prevenido ou remediado assim que identificado? E como já tem sido colocado por várias pessoas, investigadores, clínicos, especialista na área legal e ética - E como é que irá ser avaliado estes casos ao ponto de se garantir que estão a ser cumpridos todos os aspectos necessários para que o pedido de eutanásia e suicídio assistido por médicos seja adequadamente implementado?


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