Procuro um artista autista, conheces algum? pergunta Madalena (nome ficticio). Conheço algumas pessoas autistas que fazem coisas fantásticas! responde Rui (nome fictício). Sim, eu também. Mas conheces algum artista autista? replica Madalena. Talvez se fizer uma pesquisa online consiga encontrar alguma coisa, dá-me uns minutos, refere Rui. Não demorou muito até lhe dizer que lamentavelmente não a conseguia ajudar. Curioso, porque ainda a semana passada estive num congresso sobre a importância da cultura enquanto suporte da identidade e memória, continua Rui. E ouviste falar de alguma coisa de artistas autistas? De arte feita por pessoa autistas? Ou de cultura autista? bombardeia Madalena. Nada, absolutamente nada! refere Rui.
Se pensar que a cultura constitui uma referência básica para o entendimento do social e do politico, definindo a matriz e o suporta da identidade e memória de qualquer sociedade. Pensar que não existe uma noção clara e partilhada de cultura autista é demonstrativo do trabalho que ainda todos necessitamos de fazer. Mas também do ponto em que nos encontramos relativamente ao autismo e às pessoas autistas.
É incontornável pensarmos na arte, na expressão artística nas suas mais variadas formas, enquanto parte integrante e fundamental da cultura. Assim, como é inegável como a expressão artística acompanhou as grande alterações ocorridas nos povos e na Sociedade, ao longo de todo o século XX e não só. E não só acompanhou, como as próprias pessoas dentro destes movimentos acabaram por eles mesmos e os seus trabalhos motivarem e instigarem mudanças importantes na Sociedade.
Na verdade, a realidade social está estruturada em dispositivos que constituem o campo em cujo seio se manifestam as interações e os fenómenos, quer individuais, quer colectivos. Cultura é tudo aquilo que as pessoas criaram ao longo do tempo e em todos os domínios, numa dada sociedade.
Parece que as pessoas deixam de existir, diz Madalena. Não são outra coisa que não um diagnóstico de autista, continua. Nem digo que não são outra coisa que não pessoas autistas, até porque ser autista é muito mais do que tudo o que por aí se diz, refere. Mas as pessoas não percebem. Preferem ficar no diagnóstico. E ainda por cima limitam-se a um aglomerado de critérios, desabafa. E ainda há aqueles que pensam que os artistas autistas são aquelas crianças, jovens e até mesmo adultos que têm determinados dons para fazer determinadas coisas, acrescenta Rui. Precisamente, diz logo Madalena. Eu próprio desde há muito que faço desenho, principalmente a carvão. Mas só mais recentemente é que me tornei uma artista. Não é apenas o facto de ter esta capacidade que me torna uma artista, conclui. Ainda que todos nós sejamos parte da cultura, menciona Rui. Nem mais, diz Madalena. Ainda que uns mais dos que outros. Até porque o espaço que as pessoas autistas preenchem ainda é diminuto e restringido. Seja pelos diplomas legais que vão sendo construídos, mas principalmente pelas pessoas não autistas, não deixando claro de ser nossa responsabilidade, pessoas autistas, de reclamar por direito um espaço que é nosso, é de todos, conclui.
A construção do autismo começou com o modelo biomédico. E que ainda hoje é aquele que se mantêm prevalecente. Não obstante, a existência de outros modelos igualmente importante, como por exemplo o modelo social. Mas o autismo nada o é sem as pessoas, não existiriam. A própria heterogeneidade e diversidade tão característica no autismo são as pessoas, o seu pensar, sentir e agir. Mas uma herança do modelo biomédico, o tratar, curar ou reabilitar, ainda persiste na mente de muitos, médicos e não médicos. E essa dinâmica tem ela própria impedido a construção de uma cultura autista. O próprio facto dos primeiros activistas e que criaram as Organizações para as pessoas autistas terem sido os pais, levou a que durante bastante tempo a construção desta cultura fosse demorando. Mas também ocultada. Principalmente, aquela que já existia, mas que apenas poucos a sabia. Entretanto, nos anos 90 do século XX, seja com a criação do conceito de neurodiversidade. Mas principalmente com a participação mais activa das pessoas autistas na Sociedade, tem levado a uma mudança na dinâmica social e na construção da cultura autista.
Mas ainda caminhamos a passos lentos. Até porque para haver uma verdadeira cultura autista precisamos de pessoas autistas. E ainda são muitas que continuam a não ter o seu diagnóstico, mas principalmente a não quererem que se saiba da sua condição. E por mais que seja compreensível do porquê. Não deixa de ser relevante do momento em que ainda nos encontramos e de como a construção da cultura autista ainda demora. E podemos pensar que as pessoas que vão fazendo de uma forma clara o disclosure do seu diagnóstico, parecem pertencer a um polo especifico do espectro do autismo. E isso também limita a uma verdadeira representativa do autismo e da pessoa autista na construção de uma cultura autista.
Os significados atribuídos aos corpos das pessoas sem deficiência não residem em falhas físicas inerentes, mas em relações sociais em que um grupo se legitima por possuir características físicas valorizadas e mantém a sua ascendência e sua auto-identidade impondo sistematicamente o papel de inferioridade cultural ou corporal aos outros. Por sua vez, a deficiência tem uma base biológica evidente em relação à qual as sociedades e culturas humanas criam redes interpretativas elaboradas que lhe dão sentido. As variações que ocorrem naturalmente na forma, habilidade e comportamento humano são configuradas e reconfiguradas para manter uma distinção alternada e culturalmente contingente entre aqueles que não são notados, os normalmente capazes e os estigmatizados. A deficiência é simultaneamente real, tangível, mensurável, física e uma criação imaginativa projectada para dar sentido à diversidade da morfologia, capacidade e comportamento humano. E num modelo de grupo minoritário relacionado, entende-se que as pessoas com deficiência compartilham uma identidade social, cultural e política distinta, conferida por, entre outras coisas, uma experiência compartilhada de opressão.
Para trazer a discussão de volta ao autismo, podemos imaginar que é uma construção social e não uma patologia médica, e que as pessoas diagnosticadas como autistas compõem um grupo minoritário definível. Mas se o autismo é construído, afinal quem o constrói? E se as pessoas autistas que compõem um grupo minoritário, o que dá coesão e identidade ao grupo além dos sintomas médicos existentes? Mas será importante deixar de pensar o autismo como uma categoria abstracta para pessoas que foram identificadas, ou que podem ser identificadas de maneira plausível, ou que se identificaram como autistas e estudar a cultura que essas pessoas começaram a criar em comunidade.
Dentro de um modelo médico, o autismo é construído por profissionais – psiquiatras, psicólogos, educadores, naquilo que produzem nos seus artigos, livros e práticas clínicas. Dentro de um modelo social, o autismo é construído pelos próprios autistas através da cultura que eles produzem (incluindo escrita, arte e música), e suas características compartilhadas lhe conferem coesão e uma identidade distinta. Como um grupo de identidade, o autismo é um tanto amorfo, inclusivo e heterogêneo.
Mas a cultura, afinal, é todo um conjunto de saberes e de práticas compartilhadas, representando um modelo de significação para um determinado sistema, que se transmitem por tradições, em sintonia de identidade, operada pela memória colectiva.
No entanto, uma cultura e comunidade para as pessoas autistas ainda está em processo de estabelecimento. E actualmente está muito atrasada em relação a outras culturas, nomeadamente a cultura para a deficiência.
Mas a cultura requer comunidade. E para o estabelecimento de uma comunidade é essencial que as necessidades de quem está dentro da comunidade sejam reconhecidas, respeitadas, e que esteja a ser trabalhadas para que essas necessidades sejam atendidas. Em outras palavras, a advocacia e especialmente a auto-representação são um factor essencial no estabelecimento da cultura autista.
Os quadros que se encontram na imagem que acompanha o texto é de um artista autista e cujo o trabalho podem encontrar aqui.
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