"- Ainda me lembro quando te peguei no colo pela primeira vez, estavas toda enrugada. Eu estava cheia de dores do parto, mas o teu olhar curou tudo. O teu olhar sempre curou tudo!", diz Cláudia (nome fictício) de 58 anos, mãe de Joana (nome fictício) de 34 anos, autista. "- A Joana nasceu em 1986. Foi a minha primeira filha. A minha primeira viagem como mãe, como costumam dizer as pessoas. Foi a minha primeira viagem para tudo na vida, até para o autismo!", acrescenta Cláudia. Joana estava senta na cadeira ao lado distraída consigo própria. "- Eu não estou a olhar, mas estou a ouvir tudo o que dizem! Eu sempre ouvi tudo o que disseram de mim!", ouve-se de repente a Joana. Cláudia sorriu-lhe, fez-lhe uma festa breve na perna e continuou a contar a história da Joana.
"- Em 1986 eu não sabia nada, apenas aquilo que pensava que sabia!", desabafa Cláudia.
" - Os meus pais já me tinham dito isso vezes sem conta. Ao ponto de me fartar e ter esquecido. Sempre que o diziam fizeram num tom zangado, principalmente a minha mãe. Aquilo soava sempre a um ralhete enxertado de arrogância materna. Se pensas que sabes tudo minha filha, enganas-te, os teus pais sabem mais do que tu alguma vez saberás, dizia a minha mãe. O meu pai dizia o mesmo ainda que de forma encurtada. O meu pai sempre fez tudo de forma encurtada. Até a vida. Morreu muito cedo. bem sei que ninguém morre mais cedo ou mais tarde. Mas ele morreu mais cedo, demasiado." Cláudia parou de respirar, como se estivesse à espera que todas aquelas palavras assentassem.
"- A Joana foi quem mais se ressentiu do avô ter morrido. Andou dias e dias à sua procura. Na altura tinha 10 anos. Tinham diagnosticado Síndrome de Asperger um ano e meio antes. Foi na passagem para o 5º ano. A vida parecia acontecer toda ao mesmo tempo. Nem sei como me aguentei. Hoje penso que foi a Joana que me ajudou a ultrapassar tudo isto. A minha mãe não foi de certeza. Ela nunca compreendeu a Joana. Penso que também nunca me terá compreendido a mim. E além disso, a minha mãe foi quem mais falta teve do meu pai. Não é saudades, mas sim falta. O meu pai foi pilar para muitos de nós e provavelmente o mais importante pilar da minha mãe, que infelizmente nunca teve nenhum outro porque foi abandonada pelos seus próprios pais ainda em bebé. Quando a Joana me perguntou pelo avô, disse-lhe que estava no céu junto às estrelas. Esteve dois dias sem dormir, sempre a olhar para o céu. Percebi que não fazia sentido lutar contra aquela situação. Encontrei um sitio confortável no quintal e deitei-a. Felizmente era verão. Estávamos de férias. Ficou ali dia e noite, dia e noite completos. Comeu deitada. Nem sequer se levantou para ir à casa de banho. Coloquei-lhe um chapéu de praia durante o dia para o sol não a incomodar. Ela nunca gostou da luz a incidir directamente nos seus olhos. Mas por vezes ficava horas a brincar com os brilhos que incidiam sobre o tampo da mesa do escritório. Tive de arranjar uma outra estratégia para não se perder no estudo.". E quando olho para a Joana vejo que está precisamente a fazer o mesmo. A olhar para o tampo da mesa do gabinete. O meu copo de água reflecte uma espécie de arco-íris sobre a mesa. Até eu parei para o olhar.
"- Quando soube que a Joana tinha Síndrome de Asperger, foi na mesma altura que muitas poucas pessoas sabiam o que era Síndrome de Asperger. Percebi que durante algum tempo teria de ser a interprete da minha filha. Não que ela não soubesse falar. Porque o sabia muito bem, por vezes até de mais, de acordo com algumas pessoas. Muitos professores e até mesmo psicólogos ou médicos não sabiam quando falava em Síndrome de Asperger. Alguns pensavam que estaria a inventar algo apenas para ter atenção. Foi na altura que senti que a ignorância pode ser mãe da crueldade. Sabia que não valia a pena lutar contra as pessoas, principalmente com os professores e os profissionais de saúde. Isso aprendi com a minha mãe. É a única coisa que lhe agradeço ter-me ensinado. A minha mãe é médica e também deu aulas na Faculdade em determinado momento da sua vida. Então o que fiz foi procurar ler tudo o que havia sobre Síndrome de Asperger. E quando os professores não sabiam eu explicava. E quando os professores não percebiam o que havia de fazer com a Joana, eu explicava. Ao fim de dois ou três anos apareceram mais alguns parecidos à Joana na escola. Os professores começaram a requisitar mais e mais a minha ajuda. E também foi assim que eu fui percebendo e aceitando o meu papel nesta vida. Nunca tinha encontrado nenhum. A minha mãe fazia questão de o dizer muitas vezes. Não sabes o que queres e nem te envergonhas disso, repetia sem pudor. A Joana curou isso e eu em troca fui curando muitas coisas da Joana. O caminho foi doloroso. Não por ela, ainda que por vezes ela se torne uma pessoa difícil. Mas eu também o sou. Somos todos na verdade, não acha?", perguntou-me. apesar de saber que a Cláudia não estava à procura de resposta olhei-a e sorri-lhe com os olhos, ela percebeu.
"- Na escola o mais difícil nem foram as aprendizagens, apesar da Joana ter aquela questão com o ficar a entreter-se consigo própria. Os colegas, alguns deles em particular, o bullying, foi sendo uma constante, de uma forma mais ou menos encapotada. E quase sempre com o consentimento das escolas e dos professores, pelo menos de alguns. Porque a Joana é muito insistente no que diz e quer, ou porque responde determinadas coisas mais rispidas aos colegas. Para tudo parecia haver uma justificação para o retaliar deste ou daquele colega. Perguntei uma vez a certa professora o que ela pensa se eu também lhe fizesse bullying pelo facto de sentir que ela não estava a cuidar como deve ser da minha filha. E quando ela me respondeu que já tinha percebido onde a Joana tinha aprendido aqueles comportamentos foi na altura em que tirei imediatamente a minha filha daquela escola, e apresentei queixa da professora. A Joana estava no 9º ano. Não foi uma situação fácil, aquela transição. Na verdade nenhuma das transições o foram. Mas o certo é que eu queria um outro lugar para a Joana. É que nem sempre a Joana se conseguia proteger destas questões. Por vezes zangava-se comigo, como só ela se sabia zangar. Naqueles dias não havia mais nada a fazer. Parecia aqueles dias de Inverno que não pára de chover e trovejar a noite inteira. E aquilo que nos podemos fazer é abrigar. Assim era eu.".
"- Nesta altura, mais coisa menos coisa, tive o Bernardo (nome fictício). A Joana não pareceu reagir muito bem. Sempre ouvi dizer que no segundo filho era mais fácil. Não percebo porquê! Mais uma vez foi toda uma aprendizagem para todos, para mim, para a Joana e até mesmo para o Bernardo. O pai não quis ficar. Já com o pai da Joana foi a mesma coisa, também não quis. A minha mãe como sempre nunca deixou de assinalar essa questão e dizer que nem para segurar um homem eu servia, apenas para engravidar, repetia frequentemente. A minha mãe repetia muita coisa, principalmente coisas desagradáveis e que magoavam, mais no principio, porque depois deixaram de magoar. Penso que ficamos dessensibilizados para essas coisas. É como ter uma agulha a picar-nos a pele sem parar. ao fim de algum tempo deixamos de a sentir e à dor também. Assim sou eu. Já a Joana não, sempre foi um radar de sensibilidade, apanha tudo. Seja o que se diz, o odor, e por vezes até os pensamentos.", sorriu.
"- Estou um pouco cansada!", disse a Joana. Disse-lhe que eu também me estava a sentir como se fosse um alguidar e quase a transbordar de água. A Joana sorriu. "- Eu sabia que havia de entender!", retorquiu Joana. Aquela história não terminava ali, nem em nenhum outro lugar, mas era importante conta-la, para todos nós.
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