Cortar a direito! Conhece a expressão? Para além de poder significar o acto motor de usar uma tesoura para efectuar um corte em algum objecto descrevendo uma recta como trajectória. Também pode significar uma situação em que a pessoa ou alguém não está para considerar outra possibilidade de fazer aquilo que pretende. E como tal vai fazer da forma como sabe, gosta ou quer, ignorando outras possibilidades e pessoas. Por norma, este segundo entendimento de cortar a direito leva ao desconsiderar ou atropelamento dos direitos das outras pessoas, causando um impacto negativo ou dano.
Poderão existir várias razões para que alguém aja desta forma - cortar a direito! A pessoa poderá não estar a considerar a perspectiva, intenção ou direitos da outra pessoa, até por uma questão de negligência, não sabendo de que este seu cortar a direito pode vir a provocar o que quer que seja de negativo na outra pessoa. Mas também poderá fazer porque desconsidera a outra pessoa como alguém detentor de determinados direitos. Ou ainda poderá cortar a direito porque aquela é a forma que conhece e sabe, bem como entende que aquela é a forma correcta de poder ser feito. O certo é que é um comportamento que ocorre com todos nós, dependendo a frequência com que acontece, de outras variáveis psicossociais nossas envolvidas. Por exemplo, o facto da pessoa evidenciar maior índice de sintomatologia depressiva, esse facto pode levar a ter um determinado padrão de comportamentos na realização de várias actividades na sua vida. Esse facto parece condicionar a resolução dos problemas a um padrão que parece enquadrar-se neste cortar a direito, ainda que a situação reverta negativamente para si.
Outro grupo de pessoas onde este cortar a direito pode acontecer é no Espectro do Autismo. E não, não vou falar de inflexibilidade ou rigidez cognitiva e comportamental. Ainda que possam estar envolvidas neste processo. Mas vou falar antes de Auto-Determinação. Isso mesmo, auto-determinação. Essa capacidade de cada pessoa poder ser um agente transformador e causal nas escolhas, tomadas de decisão e determinação de objectivos que faz relativamente à sua vida.
A questão começa logo quando algumas pessoas se continuam a questionar de como é que pode haver auto-determinação no autismo. Como se esta condição fosse por si só causadora da não possibilidade de existir auto-determinação. E por conseguinte independência e autonomia. Depois há outros que pensando ser mais compreensivos colocam a questão da auto-determinação no autismo apenas em pessoas autistas com maior necessidade de apoios. Ou seja, como é que as pessoas com Perturbação do Espectro do Autismo nível 2 ou 3 podem ser auto-determinadas. E neste grupo continua a haver muitas pessoas inflexíveis justificando para si mesmas que estão certas e que não estão a ser capacitistas por colocarem a questão desta forma. Até porque várias pessoas continuam a justificar que pensam desta forma e bem porque os números relativamente à autonomia e independência no autismo demonstram precisamente que as pessoas autistas não conseguem ser auto-determinadas. Facto que é uma falácia, para além de ser uma desonestidade intelectual enquanto justificação.
Mas depois também temos outras questões que vão para além desta maior ou menor necessidade de apoios e da leitura que as pessoas fazer. Por exemplo, como é que podemos compreender a questão da auto-determinação nas pessoas autistas adultas que apenas o descobrem precisamente nesta fase da vida. Ou seja, viveram vinte, trinta, quarenta ou mais anos a compreenderem a sua forma de viver e ser como errada, estragada, diferente, estranha, etc. E depois dizem-lhes que afinal de contas as coisas não são bem assim e afinal estão integradas no Espectro do Autismo. Como é que a pessoa desmonta toda esta construção de si própria, da sua identidade e procura refazer esta nova visão de si e mais auto-determinada. Até porque não se trata apenas de desmontar. É fundamental poder construir. E muitos autistas adultos continuam a não ser autónomos e independentes. E não, não estou a falar do facto de se alimentarem por si próprios através do uso de talhares. Não estou a falar desse tipo de autonomia e independência. Estou a falar de ser um agente transformador e causal nas escolhas, tomadas de decisão e determinação de objectivos que faz relativamente à sua vida. E como poder construir esta auto-determinação se a pessoa autista adulta continua a ter uma tão grande dificuldade em entrar no mercado de trabalho. Ou de continuar a fazer a sua formação após o ensino obrigatório.
Enquanto muitos de nós não autistas continuarmos a cortar a direito, seja na forma de poder compreender as pessoas. Mas também aqueles que com responsabilidades politicas e de construção de decisões públicas com grande impacto na vida das pessoas autistas não fizerem outras escolhas. A vida das pessoas autistas teimará em continuar a ter todas estas dificuldades. E garantidamente não apenas pelo facto de terem estas ou outras características. Para também ajudar a romper com este ciclo é fundamental continuar a apostar no diagnóstico precoce. E no dar a conhecer à pessoa autista do seu diagnóstico e do seu perfil de funcionamento. Continuamos a ter jovens e jovens adultos que não têm conhecimento do seu diagnóstico porque alguém achou que o iria perturbar. E aos clínicos que trabalham nas mais variadas áreas com as pessoas autistas, sejam psicólogos ou não, é fundamental poder integrar na intervenção a importância da auto-determinação e de como esta pode ir sendo construída de dentro para fora e que a pessoa autista possa sair dali a ser ele próprio a continuar a tomar as suas decisões e a cortar a direito se for essa a sua escolha.
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