"Desde cedo que senti ter nascido no corpo errado!", disse Júlio (nome fictício). "Não era nada igual ao que sempre senti sobre a estranheza deste mundo ou de alguns dos meus comportamentos.", acrescentou. "É algo mais claro, que vem de dentro de mim, consciente, como sempre tendo feito sentido dessa forma. Não me confunde ou magoa como as coisas no mundo. Nem me repugna como alguns dos meus comportamentos que não consigo parar!", concluiu. Este excerto do Júlio poder-me-ia ter feito suspeitar de uma situação de disforia de género. E fez. "Em pequeno brincava sempre sozinho. Não entendia as brincadeiras ou as regras que o meu irmão dizia que os jogos tinham! E ao longo dos anos na escola fui sendo mais próximo das raparigas. Elas ouviam-me, mesmo que não conseguisse compreender a sua lógica!". E depois este outro excerto conjuntamente com outras informações poder-me-ia ter feito suspeitar de uma situação do Espectro do Autismo. E fez. E Agora?, pensei eu!
No acompanhamento das pessoas autistas é muito frequente ouvirmos dizer "Sempre me senti estranho e como não pertencendo a este mundo!", ou "As pessoas dizem que não me percebem, mas o certo é que não vejo nenhuma lógica na sua existência!", e "Apesar de aceitar os meus comportamentos e escolhas, e de na maior parte das vezes nem sequer pensar nelas, o certo é que tenho sensações e pensamentos que não consigo percebê-los!". E alguns destes dilemas são também partilhados pelas pessoas que os conhecem desde sempre e com quem partilham a vida, sejam os pais, irmãos ou companheiros.
Em relação a alguns dos comportamentos observados em algumas pessoas autistas, por exemplo, para alguns rapazes ser-lhes mais fácil e espontâneo aproximarem-se de raparigas para conversar ou serem amigos. O que por sua vez leva a que alguns pais comecem a questionar a orientação sexual do filho atendendo a que ao fim de algum tempo na adolescência não lhe conhecem nenhuma namorada e/ou interesse manifesto nesse sentido. E em determinado ponto do acompanhamento do jovem autista essa questão é colocada - "O nosso filho será homossexual?". E a questão nas raparigas também não deixa de se colocar - "Ela é tão Maria rapaz, não quer brincar com as outras raparigas ou pedir para lhe comprarem uma boneca!".
A questão apresenta várias fragilidades e que precisam de ser pensadas e faladas. Poderíamos pensar que seria fácil para um profissional de saúde que acompanha pessoas autistas dizer que essa mesma pessoa autista também apresenta uma disforia de género ou uma situação de transexualidade. Afinal de contas estamos no século 21 e estes temas são mais comumente aceites. Mas não é verdade. E se esses mesmos profissionais de saúde começarem a dizer que têm encontrado um número cada vez maior de pessoas autistas na sua prática profissional que apresentam características de disforia de género e/ou transexualismo, ainda pior. Até porque se arriscam a ouvir de alguns sectores da Sociedade e nomeadamente da Comunidade LGBT que estarão a querer patologizar a identidade de género e a orientação sexual das pessoas. Até porque ainda é suficientemente recente a existência da homossexualidade nos manuais de diagnóstico como sendo uma perturbação. Mais especificamente, até 1973 a homossexualidade era considerada uma Perturbação da Personalidade Anti-social na DSM.
Nós já não estamos em 1973 e a transexualidade e a disforia de género acaba por estar mais na ribalta, independentemente como possa ser considerada. E tem-se assistido na comunidade médica e psicológica a um aumento dos falsos positivos nesta área de trabalho. Ou seja, departamentos hospitalares que maioritariamente atendem pessoas autistas e que estão a diagnosticar Disforia de Género ao invés de Perturbação do Espectro do Autismo. Mas o contrário também tem sido reportado. Ou seja, pessoas com Disforia de Género e Transexuais que não têm estado a receber acompanhamento para a Perturbação do Espectro do Autismo porque os profissionais de saúde que os recebem não estão a considerar essa mesma hipótese. E como diz o povo, "O mexilhão é que se lixa!". Ou seja, no meio destas dificuldades de compreensão e conceptualização, que verdade seja dito, são complexas, os jovens que aparecem a pedir ajuda estão em grande sofrimento. Seja pelas questões relacionadas com a Disforia de Género mas também com aquelas relacionadas com a Perturbação do Espectro do Autismo, as pessoas encontram-se a precisar de compreensão, apoio e orientação que as ajude a fazer diminuir o mal estar e sofrimento psicológico.
Pensa-se que o género é um processo do desenvolvimento e, para alguns jovens, o género e a identidade pode continuar a mudar e desenvolver-se ao longo da infância e na adolescência ou na idade adulta. Há diversos aspectos do desenvolvimento social, emocional e de identidade que podem ser influenciados pela presença de Perturbação do Espectro do Autismo e que deve ser tido em conta na avaliação da situação vivida pela pessoa. Existem diversas explicações avançadas para esta intersecção entre a Disforia de género e transexualismo e o Espectro do Autismo, e podem ser subdivididos em mecanismos biológicos, psicológicos e sociais ou uma combinação de todos eles.
"António (nome fictício), um rapaz de 14 anos, foi diagnosticado com PEA aos 8 anos. Na primeira infância, o desenvolvimento de António diferia dos seus pares em várias áreas. Enquanto crescia, teve várias fixações, entre outras por dinossauros, depois para alienígenas e elfos. António tinha uma forma diferente de interagir com os colegas, entendia mal as intenções dos outros e sentia-se deixado de fora e intimidado. Teve uma amizade com Helena, uma rapariga da sua idade que nasceu e viveu na porta ao lado da sua. Eles gostavam de brincar com bonecas e vestir-se como princesas. António nunca falou sobre questões de identidade de género até os 12 anos. E foi precisamente nessa altura que António mencionou o forte desejo de ser como a Helena. Ao apresentar a sua situação na clínica, o António apenas conseguiu descrever o que a Helena tinha e que ele também desejava. Tais como ter roupas com brilhos e ter mais amizades com raparigas. Durante a avaliação para as questão da Disforia de género, o António levou vários meses para separar os seus próprios sentimentos e pensamentos da imagem que havia feito da Helena. Depois foi a um terapeuta com experiência em PEA para permitir que ele pudesse ajudar a dar palavras àqueles sentimentos. Durante essas sessões, o desespero tornou-se aparente. António sentiu uma enorme angustia por causa das mudanças corporais causadas pela puberdade. Os seus pais sentiram que seria importante que fosse dado espaço para o António puder descobrir a sua própria identidade e que ele desde a primeira infância que apresentava um conjunto de comportamentos de género mais diversificado."
A história do António acabou por ter um bom desfecho. E foi-lhe possível compreender melhor as suas sensações e pensamentos acerca de si próprio, e passou a aceitar com maior facilidade esta sua transição. Mas são ainda muitas as situações que não ocorrem assim e sempre com um grave prejuízo para o próprio.
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