Tenho um primo que teve de ser operado a segunda vez porque lhe deixaram uma compressa dentro do corpo quando foi operado de urgência por causa de uma hérnia!, diz Cláudio (nome fictício).
Quando era criança soube que o filho dos meus vizinhos morreu porque engoliu um corpo estranho!, diz Daniela (nome fictício). Na altura fiquei assustada e igualmente curiosa, acrescenta. Como é que se engole um corpo estranho?, refere.
Aos quinze anos o meu corpo começou a ficar estranho!, diz Rafael (nome fictício). Os pelos não paravam de crescer, e estava sempre a ir de encontro aos móveis lá em casa, acrescenta.
Estavam sempre a dizer-me que ali era tudo coisas da minha cabeça, diz Joana (nome fictício). Por vezes ficava parada a olhar para a minha cabeça ao espelho para ver se conseguia perceber alguma coisa, acrescenta. Nunca vi nada que fosse digno de reportar, refere!
É comum em todos nós termos esta sensação de um corpo estranho. Seja quando em criança pequena nos erguemos para começar a dar os primeiros passos. Ou quando mais tarde na adolescência o nosso corpo começa por dar sinais que nem sempre conseguimos identificar. E damos conta que ficamos mais tempo do que queríamos a vestir e despir roupa porque não nos sentimos confortáveis em nenhuma dela. E quando em adulto o nosso corpo assume outras configurações. Já não em altura, mas sim em largura. Seja quando as mulheres engravidam e sentem o seu ponto de equilíbrio alterado. Além de irem sentindo todo um conjunto de transformações à medida que o feto vai crescendo dentro de si. Ou então quando as pessoas vão ganhando peso. E mais idosos deixam de sentir certas partes do seu corpo, ou então sentem-nas de uma forma intensa e normalmente dolorosa. O corpo pode desta forma parecer, enquanto corpo, marginal, heterogéneo e até mesmo estranho. E não apenas a nós. Pode parecer estranho até mesmo a quem o tenta ouvir e compreender ou estudar e analisar.
Desde muito cedo que sei que não consigo fazer determinados movimentos. Como por exemplo, chegar com a ponta dos dedos da mão aos pés. E mais tarde, perceber que não consigo perceber a profundidade das coisas. Mas sei porque é que isso acontece. A primeira porque tenho um desvio cervico lombar. Enquanto que a segunda, sou invisual da vista esquerda. Ou seja, apesar de me ser algo estranho, principalmente no surgimento da situação e da tomada de consciência do mesmo. Mas fui-me adaptando à medida do tempo passar e da capacidade de me pensar e pensar o meu corpo.
Contudo, verifico que muitas pessoas isso nem sempre acontece. Por exemplo, as pessoas adultas que descobrem já depois dos quarenta anos que são autistas. Não é uma data rigorosa esta dos quarenta. Mas é porque a partir de determinada idade adulta a pessoa parece assumir que o seu corpo é aquele. No entanto, a pessoa autista, tal como qualquer pessoa, vai sentido todo um conjunto de coisas ao longo da vida. E algumas delas também se encaixam dentro das sensações estranhas. Mas talvez estas sensações estejam não só mais aumentadas, na intensidade e frequência. Mas também na ausência de explicação. Ou de uma explicação enquadrada no perfil de funcionamento da pessoa autista.
Daniel (nome fictício) deixou muito cedo de se querer trocar no balneário com os colegas. Da primeira vez que o fez foi um grande choque para si quando viu que o corpo dos seus colegas era bem diferente do seu. Ele não sabia porquê. E durante muito tempo continuou sem saber. Até um dia ter ido a uma consulta com a sua mãe já em adulto e a médica lhe perguntou se ele sempre tinha tido aquele corpo. Ao que Daniel respondeu afirmativamente. Na altura chegou a fazer um despiste genético e que acabou por ser inconclusivo. No entanto, foi-lhe diagnosticado uma Perturbação do Espectro do Autismo. O Daniel tinha 49 anos.
Maria (nome fictício) nunca se sentiu equilibrada. No sentido literal da afirmação. Andava sempre aos cambaleios. Em pequena gozavam com ela, chamando-a de pés tortos, facto que não correspondia à realidade. Mais tarde diziam que lá vinha a Maria Pingona, fazendo alusão ao facto de ela vir desequilibrada tendo ingerido determinada quantidade de álcool. Mais uma vez, facto que nunca ocorreu. Maria nunca bebeu álcool. Tinha inclusive uma qualquer reacção alérgica. A sua dificuldade sempre esteve relacionada com uma questão cinestésica. E foi numa aula de Yoga que começou a realizar já com 53 anos que a sua professora a referenciou para fazer uma avaliação psicológica. Avaliação esta que determinou a existência de uma Perturbação do Espectro d Autismo.
A partir de determinada altura, Júlio (nome fictício) sentiu que podia ter alguma capacidade mediúnica. Dizia ouvir vozes e outros sons. Vozes e sons estes que mais ninguém conseguia ou dizia ouvir. Fez todos os despistes médicos e nada lhe foi determinado. Na escola passaram a dizer que ele embirrava com tudo e com todos. Que era um picuinhas com os ruídos. Assustava-se muitas vezes. Em determinada altura não conseguia ficar sozinho em casa porque toda a casa parecia falar com ele. Era assustador. E foi assustador durante muitos anos, até que Júlio foi avaliado depois de ter ido a uma urgência hospitalar porque dizia que estava a enlouquecer. Afinal tudo aquilo era enquadrado no diagnóstico de uma Perturbação do Espectro do Autismo.
As histórias destas pessoas são comuns naqueles que são diagnosticados já na vida adulta. Ao longo de um período grande da sua vida, o seu corpo foi conversando consigo sem que os próprios e não só o compreendessem. É verdade que uns e outros foram procurando fazer uma compreensão do que se poderia passar. Mas frequentemente a conclusão chegava à ideia - Tu tens um corpo estranho!! O meu corpo é estranho!! O meu corpo não é igual aos outros!! Tenho o corpo estragado!! Sinto-me avariado!! Todos nós precisamos de um referencial para nos irmos compreendendo à medida que crescemos. Seja um referencial ancorado nos modelos (sociais) que observamos. Mas também naquilo que vamos conseguindo pensar sozinhos e em conjunto com os outros e aquilo que eles espelham de nós.
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