Mãe, gostava de aprender poesia! diz Gustavo (nome fictício). A mãe não sabia para onde olhar. E muito menos o que lhe dizer. Gustavo já lhe tinha perguntado sobre os bebés e de onde estes vinham. Algo que a mãe lhe tinha explicado de acordo com o que estava no manual escolar do Gustavo. Na altura ele tinha treze anos. Agora querer saber de aprender poesia é que a mãe não sabia como lhe dizer. E tudo isto porque a mãe pensava que não seria possível para ele aprender poesia. Não é por mal, dizia a mãe. Mas ele não consegue compreender os segundos sentidos, continuava. Tem sido uma tarefa inglória, mesmo com a ajuda dos professores e explicadores. O Gustavo simplesmente não entende como é que os moinhos de vento se transformaram em monstros. Ou as ninfas do Tejo que deixavam os marinheiros tresloucados, conclui.
Nunca ninguém tinha visto a Cristina (nome fictício) a escrever mais do que um paragrafo. E quando isso aconteceu, os pais disseram que foi porque ela haveria de estar inspirada. Cristina também não falava muito. Não vejo grande necessidade na maior parte das coisas que as pessoas habitualmente dizem, referiu algumas vezes. E de seguida ficava boa parte do tempo em silêncio. Mas quando lhe apresentei o Haiku (i.e., uma forma curta de poesia japonesa) as coisas começaram a mudar drasticamente. Cristina nunca sequer imaginou que pudesse haver alguma forma semelhante de as pessoas escreverem. E muito menos chamarem-lhe de poesia. Cristina conhecia poesia de casa dos seus pais. A casa estava toda ela cheia de livros. O pai é tradutor e a mãe editora. Consegue-se perceber o porquê deste facto. Mas também se consegue compreender a grande frustração de ambos em a filha não escrever ou então aceder em o fazer a grande custo. Um dia chegou à consulta com uma folha na mão. Sentou-se. Acho que sou uma poeta, disse. E leu.
atiram pedras
à água parada, agita-se
o céu azul, profundo, dança
Não disse muito mais na consulta naquele dia. Voltou na semana seguinte. Trazia mais folhas consigo.
Alguns de vocês recordam-se do Clube dos Poetas Mortos e de quando o professor representado pelo Robbie Williams pediu para a turma abrir o livro na página onde se podia ler Understanding Poetry (Compreender a Poesia). E ao fim de algum tempo de ler a introdução pediu aos alunos para a rasgarem. E qual não foi o espanto de grande parte deles. E outros receosos com o que iriam pensar sobre esse mesmo comportamento.
"To fully understand poetry, we must first be fluent with its meter, rhyme and figures of speech, then ask two questions: 1) How artfully has the objective of the poem been rendered and 2) How important is that objective? Question 1 rates the poem's perfection; question 2 rates its importance. And once these questions have been answered, determining the poem's greatness becomes a relatively simple matter."
Understanding Poetry, by Dr. J. Evans Pritchard Ph.D
Ainda há pouco no trabalho me perguntaram como é que conseguiriam fazer com que crianças com uma perturbação do neurodesenvolvimento percebessem poesia! Principalmente pela complexidade da própria linguagem e de todos os sentidos possíveis presentes na poesia. A minha primeira resposta foi de que talvez elas tivessem de a experimentar, fazer.
Alguns perguntar-se-iam, Porquê ensinar poesia a pessoas autistas? Às quais responderia, Talvez elas te ensinassem antes alguma coisa sobre poesia! Outros perguntariam, Porquê usar a poesia para melhorar a capacidade da pessoas de ler e compreender o texto? Principalmente quando há outras ferramentas e opções para o fazer? Porventura, porque a poesia obedece a um conjunto de ideias que traz um significado mais rico e profundo daquilo que se lê.
Imagina que o teu cérebro é um ninho de fios altamente carregados, diz Rogério (nome fictício). Muitos deles soprepõem-se de maneiras que lhe trazem impressões surpreendentes e multidimensionais do mundo. Então imagina que esses mesmos fios ameaçam o tempo todo sobrecarregar a sua capacidade de se envolver com esse mundo, refere. Imagina que a tua acuidade sensorial é tão intensa que suas cinco entradas se fundem e surgem, criando um feedback que cancela todas elas, continua. Imagina que tens tantos pensamentos, bruscos e ágeis como um relâmpago, que você só pode agarrar a cauda de um antes que outro irrompa. Imagina que existe um mecanismo – uma tecnologia, uma intervenção – que é capaz de colocar em foco essa abundância. Imagina que seus elementos estruturais funcionem como um mostrador que ajuda a localizar uma frequência clara a partir da qual transmitir, continua. Imagina que esse mecanismo existe há milhares de anos e ninguém percebeu que poderia acalmar e facilitar o teu pensamento de maneiras que nenhum farmacêutico poderia. Imagine que esse veículo de transformação seja de alguma forma... um poema, conclui.
Várias pessoas têm constatado que para os alunos com deficiência, a poesia pode incentivar a escuta, participação e reflexão. É uma questão de pode melhorar a arte de ouvir mais cuidadosamente, alargar as habilidades de atenção, proporcionar uma oportunidade para um jogo auditivo-visual, aumentar a consciência do simbólico, fomentar a ligação social através das experiências de cada um, bem como poemas que são visualmente manejáveis. Além do mais, é bem capaz que se deixe de ouvir "Oh, mas que tenho de ler tudo aquilo!" ou "Mas aquele texto tem tantas palavras!". Ler poesia torna-se uma experiência emocional total em relação à utilização dos sentidos.
E se pensam que os alunos vão dizer que poesia é chato e que ainda por cima não percebem nada. Talvez seja porque os habituaram a compreender o poema de acordo com as orientações do Dr. J. Evans Pritchard. Ou seja, mais do que compreender, é fundamental que as pessoas possam sentir a poesia, e deixar que a mesma possa ser expressa tal qual a sentem. Somente assim a poderão apreender e então poderem vir a compreende-la, mas também a escrever a sua própria poesia. Ou seja, a escreverem-se a si mesmos.
Eu sei que escrever poesia não faz de mim uma poeta, diz Rute (nome fictício). Também não é por isso que escrevo, para ser poeta, refere. Durante muito tempo não escrevi poesia porque pensei que teria de o ser em primeiro lugar. Depois pensei que teria de vir a ser, caso contrário não o poderia, continua. O mesmo passou-se com o ser alguém, uma pessoa, acrescenta. Durante muito tempo achei que não o poderia ser. Não me compreendia. E como tal achava que não tinha o direito de o ser. Depois descobri que sou autista. E como também não compreendia muito bem o que isso representava na minha vida, também pensei que não o poderia ser, refere. Cheguei mesmo a pensar que não seria uma pessoa e também que não seria uma autista, continua. Pensei que para ser algo ou alguém teria de a compreender. Até que um dia conheci a poesia, conclui.
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