Nunca compreendi verdadeiramente aquela frase de velhos são os trapos! diz Deolinda (nome fictício). Lá em casa os trapos sempre foram panos em condições, como novos. Talvez por isso sempre me tenha considerado uma jovem! diz entre uma gargalhada.
Os meus filhos estão sempre a insistir para eu ir para o parque jogar carta com os outros velhos! diz Manuel (nome fictício). Nunca gostei de cartas e nunca fiz para gostar. Os meus netos já o sabem e por isso é que me perguntam se eu os ensino a jogar xadrez. Isso sim é um jogo. E não me parece que aqueles velhos tenham condições para o jogar, até porque é preciso estar em silêncio e eles estão sempre a falar! comenta.
A Deolinda e o Manuel são duas pessoas autistas idosas. A Deolinda tem 78 anos. Viveu metade deles no Reino Unido. Foi para lá trabalhar bem cedo. Não se adaptava por cá. O meu país não era suficiente para uma pessoa como eu! diz. O Manuel tem 81 anos. O seu pai era médico. Nunca foi formalmente diagnosticado, mas leu muito sobre o autismo e outras condições neuropsiquiátricas. Sempre foi o seu grande interesse, ainda que não tenha ido para a escola de Medicina. Não achei que seria o espaço para eu aprender o que queria e como queria, até porque a minha experiência na escola foi suficientemente dura para querer continuar a fazer aquele caminho e em retorno não receber algo suficientemente bom! refere.
Compreender como é que os adultos autistas experienciam subjectivamente o processo de envelhecimento e de viver enquanto pessoa autista é crucial para uma melhor compreensão da trajectória do autismo ao longo da vida, além de ser informativo para outras áreas de investigação que investigam aspectos como as necessidades de serviços ou as alterações cognitivas em adultos autistas que envelhecem.
É frequente que em algum momento das suas vidas, as pessoas autistas, muitas vezes antes do diagnóstico de autismo, tenham sido diagnosticados com depressão, ansiedade, perturbação bipolar, etc. Alguns sentiram que a depressão era reactiva, na medida em que resultava das dificuldades do autismo não diagnosticado.
Jornalista: Como é que foi para si sentir que estava deprimida e ter uma impressão que não era apenas isso?
Deolinda: O que se passa é que, na altura, eu pensava que estava deprimida, passava a maior parte do tempo a chorar, para ser sincera, e agora sei porquê!
Manuel: Tive muitas depressões, que atribuí ao facto de não compreenderem a minha pessoa, a minha maneira de ser, e agora compreendo que as pessoas nunca compreenderam o meu autismo!
Jornalista: Como foi receber o diagnóstico?
Deolinda: Quando recebi o diagnóstico não foi uma surpresa total, para ser sincera, desatei a chorar e disse apenas ao médico 'estás um pouco atrasado', porque desde a infância que as coisas tinham sido um pouco desastrosas!
Manuel: Porque era realmente demasiado tarde para fazer algo de bom. Agora apercebi-me que há muita coisa, e sim, faz sentido, e também muita coisa da minha infância faz agora sentido. É uma pena que não tenham conseguido fazer alguma coisa na altura. Mas eu também nunca avancei nesse sentido!
Deolinda: Sim, foi uma sensação maravilhosa, porque basicamente apagou todas as memórias embaraçosas, agora sei porque é que todas aquelas coisas aconteceram. [...] Agora sei, pelo menos, que não é o meu carácter moral, não é o meu carácter que está em falta!
Jornalista: Como foi viver a vossa vida quando ela parece ser distante da forma dos outros pensarem?
Deolinda: Parece que estamos sempre a fazer as coisas mal, falamos na altura errada, quando as pessoas estão a conversar, ou não conseguimos, não estamos a seguir a conversa correctamente, ou sabemos o que queremos dizer, mas não o expressamos da forma que pensamos estar a expressar!
Manuel: Por isso, é preciso verificar constantemente se o nosso coração está no sítio certo, se não queremos realmente ignorar as pessoas ou ser desdenhosos, é apenas algo na minha linguagem corporal que se manifesta dessa forma. Faltava algo na forma como me relacionava com as pessoas e estava constantemente a tentar encontrar uma forma de me integrar!
Ser uma pessoa autista é ser diferente. Até porque a forma como se sente, pensam e age a vida e na vida é diferente e desde sempre. Claro que este ser diferente é diferente dependendo do facto da pessoa ter sido diagnosticada precocemente ou já tardiamente na vida adulta. Assim como também é diferente ser uma pessoa autista dependendo do ambiente cultural envolvente. Ser autista num país em que ainda se está a começar a compreender o autismo na pessoa adulta leva a equacionar todo um conjunto de desafios e constrangimentos. Assim como ser autista no masculino e no feminino também representa uma grande diferença, seja do ponto de vista do fenótipo de cada um, mas também pelo próprio papel social atribuído ao homem e mulher.
Há muito que não se sabe ou compreende sobre o autismo na vida adulta e ainda mais na pessoa idosa. Como em qualquer etapa da vida precisamos de escutar as pessoas e o que elas sentem, pensam e agem sobre a sua pessoa e a sua vida. Apenas assim conseguiremos construir uma melhor compreensão, mais realista e capaz de envolver a pessoa autista no próprio processo de mudança, mas até principalmente no seu processo de construção de identidade e cidadania.
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