"- Do que eu sou capaz?", perguntaram-me. "De ser eu!", disse-lhes! "Não me compreenderam. Mas eu também não, apesar de perceber que todos falam muito desta coisa do serem capaz disto ou daquilo!". Em criança os miúdos na rua estavam sempre a perguntar isso, "És capaz de subir aquela árvore?", e depois riam. "Eu não consigo subir mas sei desenhar-me a subi-la!", respondia-lhes sempre com as mesmas palavras para não me enganar. "Uma vez um deles bateu-me. No dia seguinte trouxe-lhe um desenho dele a bater-me!", e ele nunca mais o fez. "Pouco tempo depois descobri que era autista. Desenhei um rapaz numa folha e entreguei aos meus pais!". "O meu pai encolheu os ombros e perguntou-me quem era. Se tinha sido outro rapaz que me batera!". "A minha mãe passou a sua mão pelo meu cabelo e chorou." "Respondi ao meu pai que aquele era eu. E ele encolheu ainda mais os ombros.". "Nunca mais vi a minha mãe chorar!".
O Carlos (nome fictício) já foi Ana. E ambos são autistas. O Carlos é transexual e fez o processo para realizar a cirurgia para a mudança de sexo. Carlos diz que sempre se sentiu como tendo nascido no corpo errado, e que ainda hoje sente ter de lutar duplamente contra isso. Quando lhe pergunto diz-me "Primeiro lutei contra a não aceitação da minha identidade de género. Foi algo que durou muito tempo e ainda hoje vai persistindo, principalmente em pessoas que não me conhecem. E logo a seguir veio o Autismo. Ainda hoje, ao fim de quinze anos continuo a ter de explicar às pessoas o que sou, porque sinto as coisas de determinada forma, porque penso isto ou aquilo por vezes sem querer, ou sorrio espontaneamente mesmo que em sítios mais impróprios!".
Para a maioria das pessoas autistas, perceber que a sociedade tem expectativas em relação a si vem com a percepção de que não estão em conformidade com elas. Muitas vezes acham difícil identificar as normas que devem cumprir, e mesmo quando as têm, se não conseguirem entender o ponto, a maioria deles não consegue esforçar-se muito. Tendem a ter pouca paciência com coisas que lhes parecem estúpidas e sem sentido. Esta questão faz-me pensar em algo que costuma acontecer frequentemente com os estudantes. Quando chegam a casa com o teste e lhes perguntam que nota obtiveram, alguns respondem "Tive 13 valores!" e a resposta de volta é "Tens de te esforçar mais, isso não chega!". E quando de uma próxima trazem o teste com 17 valores a resposta é "Não fizeste mais do que a tua obrigação!". A sensação que muitos conseguem traduzir ao fim de algum tempo é de que sentem que nunca parecem capazes de nada. Que falta sempre algo e que sentem uma insatisfação constante como companheira. Mas não sem antes terem passado anos e anos de sofrimento, até terem compreendido isso na psicoterapia.
"E por favor, não confundam ambição com expectativas. E muito menos confundam a sua ambição com a do Outro!", acrescenta o Carlos. Ele é designer. Diz que é a única coisa em que não mudou, excepto na melhoria da técnica. Diz que desde cedo percebeu que iria mudar o mundo com os seus desenhos. E lembra isso quando me contou a história do rapaz que lhe tinha batido e ele lhe ofereceu um desenho dele a bater-lhe. "As pessoas pareciam não me entender, mas pareciam entender os desenhos!", diz-me. E que desde então ficou com a certeza de que seria assim que haveria de contribuir para mudar o mundo.
Quando o Carlos viu a fotografia no gabinete "Autismo rima com feminismo", sorriu da forma séria que lhe é característica e disse-me, "Podia ter sido eu a dizer essa frase!". "Sempre fui um não conformista.", remata. "Nem com o meu corpo me conformei.", acabou a frase antes mesmo de ter desatado a gargalhar. E por isso também é que o Carlos sente compreender as mulheres. E a forma como estas sempre foram e continuam a ser mal entendidas pelas normas da Sociedade. "Custa-me ver as raparigas e mulheres que se subjugam às expectativas sociais e inclusive algumas reforçam e mantêm essas mesmas expectativas.", diz-o num tom mais zangado.
Carlos tem consciência que o facto de ser um não conformista lhe tem causado muito dissabor na vida. "Não mudava nada em momento algum!", diz-me com um ar confrontativo. "Se há coisa em que sou bom é em ser não conformista!" e volta a rir. E acrescenta que no Espectro do Autismo se há coisa em as pessoas não são boas é em conformidade, principalmente em normas de género. Não é de estranhar que Carlos diga isso. São inúmeros os rapazes autistas que dizem que nunca gostaram de jogar à bola e que quando perceberam porque era colocados na baliza já era tarde demais. Da mesma maneira que muitas raparigas dizem que nunca gostaram de brincar com as bonecas ou porque é que insistiam em lhe dar nomes de pessoas. Para além disso, é felizmente cada vez mais reconhecido que existe uma correlação intrigante entre autismo e identidades variantes de género, mas isso é uma coisa muito mais ampla. Espera-se que os meninos sejam competitivos em jogos sociais que muitas vezes estão além daquilo que os meninos autistas são ou querem ser. É esperado que desfrutem de desportos coletivos, quando as equipas são desconcertantes e a maioria é dispraxica ou pelo menos desajeitada. Esperam que façam parte de um clube universal de meninos padronizados, quando a maioria dos outros meninos não são menos estranhos para eles do que as meninas.
Tudo isso parece significar que o menino autista em média sofre bastante com o pater familias. Este privilégio masculino significa algo muito diferente para alguém capaz e disposto a dominar os outros do que para um menino autista socialmente confuso e que simplesmente não consegue controlar a masculinidade. E as meninas autistas também não se saem melhor com isso. E com a adicionalmente de terem de lidar com todas as expectativas e adereços que um Sociedade Patriarcal tem e ainda assim ter que navegar em hierarquias sociais que são amplamente incompreensíveis. Sendo que tudo isto acontece ao mesmo tempo em que se confunde com o que os seus colegas, professores e pais esperam das meninas. E o Carlos sabem bem do que fala. Em criança tinha de lutar contra tudo nesse âmbito. Desde os vestidos que o obrigavam a usar aos domingos e saídas que apenas eram especiais para os outros e nunca para si. Os laços no cabelo que estavam sempre a cair porque lhe causavam comichão. Ou as pessoas que não paravam de lhe apertar as bochechas e a dizerem que um dia ela (ainda na altura Ana) haveria de vir a namorar com o seu filho. Metade daquela conversa nem o Carlos conseguia compreender. Só mais tarde e quando viu vezes sem conta e ainda hoje aquele padrão. As hipersensibilidades, a dificuldade em estar em espaços lotados, com barulho de bebés a chorar por já estarem cansados e cheios de sono e crianças sempre a correr e ainda por cima sentir que nada naquele corpo lhe parecia fazer sentido, a não ser a sua alma.
"Se as pessoas soubessem o esforço que uma pessoa autista faz desde que se levanta até deitar, dia após dia, ao longo de anos, nunca mais viriam falar de capacidades!", desabafa. "As primeiras coisas que ouvi falar do meu autismo foram deficit disto e daquilo, baixas competências de não sei mais o quê, incapacidade para mais estas outras coisas, inexpressividade e dificuldade em estabelecer o contacto ocular.". Diz tudo aquilo de uma só vez e sem expressão, não por dificuldade, mas por assim o desejar. "Não compreendi nada daquilo, a não ser que os meus pais ficaram assustados como nunca antes os tinha visto. Até dizer que iria mudar de sexo.", acrescenta. "Após estes anos todos fui falando com mais e mais pessoas autistas e um dos temas habituais é de como foi a descoberta. E descobri que apesar de na altura ainda ser a Ana foi mais ou menos fácil de perceber o que eu tinha. Muitas outras raparigas como eu, jovens e mulheres adultas continuam a não ter tanta sorte.", conclui. Esta questão do ableism, traduzido para Português como capacitismo é no fundo uma descriminação e preconceito social contra as pessoas com alguma deficiência. E na nossa Sociedade se antes a ausência de doença era sinal de saúde, conceito já ultrapassado, parece que as coisas agora ficaram por, a ausência de qualquer tipo de deficiência é a norma!
E este tipo de capacitismo está encapotado de muita e variada forma, desde a forma mais cruel e explicita na forma como as pessoas se referem no uso da palavra autista, ao mencionar de que a pessoa não parece nada autista, passando pela própria descrição dos critérios de diagnóstico da Perturbação do Espectro do Autismo. Na verdade, esta última questão relacionada com os critérios de diagnóstico acaba em muito por reforçar este estigma e manutenção do paradigma do capacitismo. Tudo isso parece significar que uma pessoa autista pode esperar familiarizar-se desde cedo com muitos dos problemas enfrentados por pessoas marginalizadas em todos os lugares.
É verdade que as pessoas autistas podem em determinadas situações não ter uma visão das perspectivas de outras pessoas, particularmente as pessoas neurotípicas pelas quais acabam por estar maioritariamente cercados. O salto imaginativo necessário para entender como são as mulheres neurotipicas não é fácil, mesmo para as mulheres do espectro do autismo, já sem falar dos homens. Carlos é na verdade uma pessoa muito capaz de falar sobre isto, até porque viveu uma parte desta experiência e ainda vive a outra parte. Enquanto Ana sentiu a dificuldade em compreender as brincadeiras que as suas colegas na escola faziam e as suas primas nas festas de anos em que era obrigada a ir. E agora ao fim destes anos sente a dificuldade em não saber como introduzir um tema que não seja futebol junto dos colegas lá no atelier. No seu tempo livre e desde cedo que Carlos sentiu que seria importante envolver-se enquanto activista nesta área. Até porque quando começou nestas andanças não lhe fazia muito sentido o movimento feminista mas que não era activo. "Para quê ser feminista se não é para ajudar na mudança?", perguntou-me retoricamente. Parte do feminismo não é apenas conscientizar-se das maneiras pelas quais as relações sociais prejudicam as mulheres, mas trabalhar activamente para mudá-las. Isso é um desafio!
Mas as dificuldades não ficam apenas nas expectativas sociais e nos conflitos, nas coisas que pensam que devem ser as mulheres as fazer ou os homens! As dificuldades vão para além disso, nomeadamente nas situações sexuais, onde se sentem igualmente vulneráveis. E Carlos compreende isso muito bem, seja enquanto autista mas também enquanto alguém que sente compreender a vulnerabilidade das mulheres. Dado o quão terrível a sociedade é em respeitar e negociar o consentimento, os mal-entendidos adicionais em que a pessoa autista se vê envolvida são muitos. Nomeadamente, até porque muito têm muito poucas oportunidades para adquirir experiência na esfera sexual. E como tal é esperado que não tenham tanto à vontade e certeza de quando ou como não há problema em negar o consentimento. Hoje já se fala mais sobre a sexualidade e as relações intimas também no espectro do autismo. Mas ainda muito pouco sobre a questão do consentimento. As mulheres autistas estão longe de ser as únicas que às vezes não têm certeza se não há problema em dizer não - mas o problema pode ser particularmente grave com elas. Quando os seus próprios instintos sobre o que está bem e o que não está regularmente estão em desacordo com os da maioria das outras pessoas, há muita pressão para acompanhar o que as outras pessoas dizem que está bem. Nem sempre fica claro que isso definitivamente não se estende ao sexo, e a maioria das pessoas autistas não é ensinada o suficiente sobre como recusar as coisas. Tudo isso pode deixar as pessoas autistas assustadoramente vulneráveis a predadores sexuais.
Muitos destes problemas não têm sido discutidos em número suficiente, principalmente porque estão em muito relacionados com o subdiagnóstico de raparigas e mulheres autistas. Ainda se continua a acreditar amplamente que o autismo é várias vezes mais comum em homens do que em mulheres. Isto apesar de nos últimos anos começarmos a perceber que as taxas de diagnóstico muito mais altas nas populações masculinas são em grande parte causadas pelo autismo se apresentar diferentemente nas raparigas. As expectativas sociais das raparigas aumentam a probabilidade de que elas aprendam a aparecer em segundo plano, a serem manobradas para socializar, gostem ou não, e a ter mais interesses focados nas pessoas. Tudo isso torna menos provável que elas sejam identificados como autistas. Para além do facto das dificuldades e reclamações identificadas pelas mulheres não serem levadas a sério po médicos, professores e outros profissionais.
Os problemas compartilhados por mulheres e autistas geralmente têm a ver com este domínio dos homens socialmente confiantes e com a elevação das características "masculinas". "O movimento feminista e o movimento pelos direitos e aceitação dos autistas têm sobreposições substanciais, bem como tensões importantes. Ambos poderiam aprender com o outro.", conclui o Carlos. E já agora todos nós também, referi-lhe eu.
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