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Autismo rima com feminino

Foto do escritor: pedrorodriguespedrorodrigues

Nasci a 23 de fevereiro de 1953. Fiz este ano setenta e dois anos, diz Rafaela (nome fictício). Votei pela primeira vez antes de conseguir ver reconhecido a minha condição! refere. E não, não me estou a referir a ser mulher. Votei no primeiro ano da faculdade. Vim para Lisboa estudar enfermagem em 1978. Descobri nessa altura que em 1976 foi reconhecido o direito ao voto a todos os cidadãos maiores de 18 anos, sem distinção do sexo. Na aldeia onde nasci e morei não se falava de nada disso. Mas não é nada que me espante. A aldeia onde eu hoje vivo é cada vez mais global e ainda há muitas coisas que não se falam, continua.


Pouco depois de ter começado o curso de enfermagem passou a haver uma especialização em saúde mental e psiquiátrica. Senti que era onde me fazia sentido trabalhar. Sempre me interessei pelo comportamento humano. Não tinha acesso à informação que hoje se disponibiliza, mas tinha o mais importante. A curiosidade em conhecer e compreender o comportamento humano. E por isso passava o meu tempo a olhar para as pessoas. Estudava as pessoas como gostava de pensar. Tinha cadernos onde fazia anotações. Assim ninguém me incomodava. Foi assim que passei todo o tempo da escola até entrar para a faculdade sem que ninguém me incomodasse, refere. Interessava-me o comportamento humano, mas não as relações com os seres humanos! Mas como era a melhor aluna os professores diziam para os outros não me irem incomodar. E os meus pais viam isso como uma benção. Em algumas alturas viam isso como uma maldição. Muitas das coisas que gostava ou sabia fazer era sempre diferente dos outros. As pessoas toleravam, mas faziam sempre aquele olhar de estarem a olhar para uma pessoa estranha. Eu sentia isso! Sempre senti isso, ser diferente. Não é ser estranha, porque isso sempre considerei que eram os outros que pareciam estranhos! Incoerentes, nada consistentes, pouco verdadeiros, estranhos! continua.


Trabalhei muito para que as pessoas que necessitavam de cuidados de saúde os pudessem ter nas melhores condições possíveis. Melhores do que eu alguma vez tinha tido. A minha depressão vinha de há muito. Provavelmente sempre esteve comigo. Mas só quando comecei a exercer enfermagem é que percebi que podia fazer alguma coisa em relação a isso. Havia um médico psiquiatra no serviço com quem eu me dava. Na verdade era o único com quem eu posso dizer que me dava. Até porque era muito parecido comigo. Certa vez ganhei coragem e disse que precisava de medicação anti-depressiva. Sabia que ele não ia dizer nada. E não vale dizer que é segredo profissional porque já não era a primeira vez que ouvia que esta ou aquela tomava medicação para isto ou aquilo passada por médicos do serviço. Nunca percebi porque continuavam a insistir nessa coisa do sigilo profissional se não o cumpriam. É mais uma das cosias que nunca percebi as pessoas - afirmarem coisas que não cumprem e fazem precisamente o contrário! continua.


Mas não era apenas a depressão que estava comigo desde sempre. Havia mais. Sempre houve mais ainda que eu não soubesse muito bem o quê. Quando comecei a trabalhar no hospital de Júlio de Matos percebi que havia muitas coisas diferentes, ainda que para grande parte delas se soubesse os nomes. Sabia que as minhas coisas não se enquadravam naquilo, ainda que algumas andassem lá perto. Foram anos muito dificeis. Talvez o trabalho tenha sido a minha salvação. Várias vezes fiquei de baixa. A minha depressão iam piorando com o tempo. Fui a vários profissionais no Porto e em Coimbra. Não queria falar com ninguém de Lisboa, até porque sabia que além de não me compreenderem iam começar a falar das minhas coisas! Ninguém me conhecia no Porto ou em Coimbra e eu não me identificava como enfermeira. Procurei alguém que pudesse olhar para lá da minha depressão. Ainda houve quem me tivesse diagnosticado com Perturbação Bipolar. E em Coimbra disseram que podia ser Ansiedade Social. Mas tudo o que lia não se encaixava naquilo que eu sentia. Só aos 45 anos é que encontrei um livro por mero acaso que falava de Síndrome de Asperger. E quando comecei a ler percebi que tinha entrado recentemente na DSM-IV esse diagnóstico. Aquele momento por que eu tanto esperava caiu-me nas mãos vindo de um livro, diz.


Hoje, dia 8 de março, dia internacional da mulher, lembrei-me de tudo isto, refere. Porquê? Porque apenas aos 58 anos é que alguém disse que toda a minha história se encaixa no espectro do autismo. Votei durante 33 anos depois da primeira vez ao 25. Mas só consegui perceber quem eu verdadeiramente era aos 58 anos, diz. Claro que ter liberdade para votar é uma conquista fundamental. Assim como não precisar de autorização do meu pai ou de outro homem para fazer coisas na minha vida. E ainda que hajam muitas diferenças no tratamento das mulheres em vários dominios, apesar de dizerem que já foi feito muito a nível de leis para a igualmente. As pessoas com uma condição de saúde mental são párias! Aqueles que têm mais sorte chamam-lhe o diagnóstico ao invés de dizerem o seu nome próprio. Mas as raparigas e mulheres no autismo continuam a ver negado a sua própria condição! A verem reconhecida a sua própria natureza. Muitas a serem humilhadas na tentativa de procurarem saber o que se passa consiga. E outras tantas a verem negado o acesso a cuidados de saúde que lhe são consagrados enquanto direito. E sem esse direito de serem quem elas próprias são lutam contra todos os outros e por coisas que vêm ser mais fáceis deles alcançarem! comenta.


Hoje com 72 anos restam-me poucos anos para me continuar a compreender em todos estes anos de existência. Mas muitas raparigas e mulheres, apesar de terem o direito para votar e a liberdade de dizerem o que sentem, ainda têm de lutar para serem reconhecidas como tendo uma condição do espectro do autismo! E vivem uma vida, em casa, na escola e na faculdade, no trabalho e na Sociedade, como se contiuassemos no tempo do Estado Novo. Naquela altura não tinhamos direitos, mas ao menos sabiamos que não os tinhamos. Hoje, dizem que os temos, mas depois não os reconhecem! As pessoas continuam a ser estranhas, e eu continuo a ser esta pessoa diferente! conclui.




 
 
 

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