"Parava no café quando eu lá estava
Na voz tinha o talento dos pedintes
Entre um cigarro e outro lá cravava a bica
Ao melhor dos seus ouvintes..."
Ala dos namorados, Loucos de Lisboa
Sem abrigo! Curioso a escolha da palavra, diz Cláudia (nome fictício). Tem 27 anos feitos recentemente. Se há coisa que sabe são datas ou outras informações que assinalam episódios significativos da história da humanidade. Tem uma Licenciatura em Economia. Preparava-se para iniciar o Mestrado em Finanças, na mesma altura que tinha arrendado um apartamento para ir viver sozinha. Até porque tinha conseguido novo contrato de trabalho. O ultimo não tinha corrido bem. E o outro anterior também não. Havia muita coisa na vida da Cláudia que parecia não correr bem. São as pessoas! costuma dizer. Seria tudo muito mais fácil sem as pessoas! Os animais não causam as confusões que as pessoas causam diariamente! continua. Na verdade sempre fui uma sem abrigo! exclama, voltando ao tema da conversa inicial. Se pensarmos que sem abrigo significa estar privada de alguns dos direitos que a democracia participativa prevê estar ao alcance de todos os cidadãos e cidadãs remetendo-os assim para uma situação de pobreza e exclusão difícil de inverter no sentido da inclusão social, então não vejo porque não me considerar desde sempre uma sem abrigo! refere. As pessoas pensam que por estarmos nestas ou noutras situações de vida não somos seres pensantes! desabafa. Já durante o período da escola estas situações aconteciam. Queria acrescentar alguma coisa ao que estava a ser dito pela professora ou pelos colegas, ou então corrigir porque estavam a dizer um disparate e não me deixavam! diz. Ao fim de muito pouco tempo mandavam-me calar. E depois passaram a dizer que eu era arrogante e que achava que sabia tudo! acrescenta. Ou por exemplo hoje em dia nem sempre me deixam entrar na biblioteca municipal. Devem pensar que por estar assim vestida vou fazer alguma confusão ou roubar, acrescenta. Em algumas bibliotecas ficam espantados por lhes mostrar o cartão de leitor de bibliotecas da cidade de Lisboa. Faz-me lembrar todos os outros sítios que me foram sendo vedados ao longo da vida. Foram as festas de aniversários dos colegas, ainda que estas eu agradeça, até porque nunca me diverti em nenhuma delas. Já para não falar do barulho e de toda a confusão daqueles miúdos a correr, gritar, empurrar e tocar com as mãos sujas e suadas na comida e depois nas pessoas! vai partilhando. Recentemente descobri ao ler uns manuais acerca do comportamento na biblioteca que posso ter autismo. Tenho estado a ler mais sobre o assunto e a procurar saber mais. Curioso que apesar de ter passado por tantos médicos ou psicólogos nunca nenhum me tenha falado sobre isso! Ainda não sei muito bem o que fazer e como fazer, mas tenho de ler mais um pouco sobre o assunto! conclui.
Raúl (nome ficticio) tem 26 anos. Não parece, até pelas falhas que tem no cabelo. As pessoas não sabem, mas durante muito tempo teve tricotilomania. É uma pessoa de poucas palavras. Sempre foi. Prefere escrever. Tem muitas folhas escritas nos bolsos da roupa e outras presas por elásticos que vão-se acumulando dentro do caixote de papelão que construiu para lhe servir de abrigo. Fez um curso profissional de Design. Sempre foi muito bom com as mãos, ainda que estas lhe tremam mais do que ele gostaria. Não tem estado a tomar a medicação. Não é a primeira vez que acontece ter deixado de a tomar. Nem sempre se sentia bem e também não compreendia porque se sentia daquela forma. Ainda que lhe tivessem explicado inúmeras vezes, Raúl insistia sempre muito e mais do que qualquer outra pessoa na sua própria visão. É algo característico seu. Diz que por isso ninguém se atreve a aproximar de si no local onde tem a sua casa. Diz que gosta de lhe chamar de casa. Até porque nunca teve uma a que tivesse gosto em a chamar assim. Ainda tentou assim que acabou o curso começar a trabalhar e com isso tentar pensar em arranjar uma casa para sair de onde vivia com os seus pais, mas não conseguiu. As relações com os pais e os quatro irmãos todos mais velhos sempre foi muito conflituosa. A partir de determinado momento agressiva até. Diz que as coisas pioraram quando no hospital disseram aos pais que ele tinha um diagnóstico de Síndrome de Asperger e de Perturbação de Hiperactividade e Défice de Atenção. Em casa nunca perceberam o que era isso. E o Raúl diz que o seu pai e três dos seus irmãos apresentavam características muito iguais. O outro irmão acabou por morrer de overdose aos 20 anos. Não sabe muito bem como acabou a viver ali. Várias vezes saia de casa e estava dias sem voltar. Fica a dormir por onde podia. Na maior parte das vezes na rua. Nas vezes em que ficou em casa de algumas pessoas, quase sempre pessoas estranhas, as coisas não funcionavam e ao fim de alguns minutos acabava por se vir embora. Diz que o lixo e o cheiros das casas é muito intenso. Talvez me tenha habituado a esta rotina! diz. Tenho muitas rotinas e assim sinto que as posso fazer sem que ninguém me diga nada! refere.
Ultimamente temos ouvido falar mais sobre as dificuldades que várias pessoas têm de encontrar uma casa. O debate parece ficar muito centrado nos preços dos espaços imobiliários, principalmente nas grandes cidades. Mas também vão falando da precariedade dos empregos para fazer frente a estes valores. Ultimamente temos falado mais da saúde mental, e do quanto fundamental é que as pessoas tenham condições sócio-económicas para cuidar da sua saúde mental. E isso tem levado a olhar para uma franja, que não é assim tão franja da Sociedade. Isto porque se temos em Portugal cerca de 2 milhões de cidadãos a viver abaixo do limiar da pobreza. E além destes temos um número igualmente considerável de pessoas que têm ordenado mínimo e outras condições precárias. E que também por isso acabam por relegar o cuidar da sua saúde mental para terceiro ou quarto plano. Até porque o próprio Sistema Nacional de Saúde não está em condições de fornecer uma resposta necessária e adequada à saúde mental da Sociedade. Se pensarmos que as pessoas precisam de esperar um ano e meio para serem encaminhados para uma consulta de psicologia e a regularidade destas é na maior parte das vezes mensal. Conseguimos perceber que a resposta passa por ir procurar no sistema privado de saúde uma resposta, deixando de parte muitos dos que anteriormente falamos e não têm condições para tal.
Ultimamente também se tem falado mais de autismo, e ainda mais de autismo no adulto. Curioso, porque sabemos que o autismo é uma condição ao longo da vida há mais de 80 anos. Em Portugal, pelo menos por enquanto, não se tem falado de quantas pessoas sem abrigo têm um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. Mas em vários países da Europa tem-se olhado para este grupo de pessoas e procurado conhecer mais e melhor as suas histórias e condições de saúde mental. E na verdade não custa muito a pensar que uma pessoa autista adulta em Portugal, tenha inúmeras dificuldades que possam vir a causar esta situação de se tornarem sem abrigo. Por exemplo, o número acima dos 80% de pessoas autistas adultas que não têm um emprego. E os restante 20% das pessoas autistas adultas que têm emprego estão em situações frequentemente frágeis. Seja por causa dos próprios contratos em si, mas também pela própria dificuldade em conseguirem manter os seus empregos, até pela ausência de adequações ou políticas de inclusão nas empresas. Além disso, as pessoas autistas adultas, principalmente aquelas que não têm um atestado multiusos com uma percentagem de incapacidade igual ou superior a 60%, não têm o mínimo dos apoios sociais por parte do Estado. Para além de todas as dificuldades em continuarem a aceder ao diagnóstico e ao próprio acompanhamento médico e psicológico.
Haverá por isso que continuar a falar mais e melhor sobre todas estas e outras condições de vida, não apenas das pessoas que as vivem directamente, mas também de todos nós. E neste falar e reflectir podermos todos criar sinergias para criar pressão sobre a construção de políticas de saúde mental, social, habitacional e outras condignas com a condição humana.
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