Quem não recorda a cena do Pai Tirano em que a senhora entra no café e cheia de fome pede pastéis de camarão. Ao que lhe respondem que não há e ela retorquiu - então quero dois copinhos de vinho branco? Pois bem, uma noticia publicada ontem no Washington Post fala sobre o impacto que ouvir autistas adultos pode ter na forma como o próprio pode passar a abordar diferentemente o seu filho autista. Ouvir autistas adultos? Ouviu perfeitamente. Ora escute...
A probabilidade de haver uma criança com uma perturbação do neurodesenvolvimento é conhecida, ainda que os números possam variar. No caso do autismo fala-se na actualidade de 1 em cada 59 crianças apresenta este diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo (PEA). O facto dos pais poderem ter ou não uma condição igual e conhecerem-na é bem menor. O que faz com que muitos destes pais não estejam e não se sintam equipados para lidar com uma boa parte das situações que os seus filhos autistas possam apresentar. E esta mesma dificuldade tem um impacto na própria parentalidade.
Na grande parte das vezes a família enceta uma viagem na procura desmedida de soluções. Vamos pensar que na grande maioria essas soluções são as adequadas, quer ao nível médico e de outras terapias. Logo aqui vai depender da forma como os profissionais que intervêm junto da criança consideram a família como importantes no processo ao ponto de a envolver. E não de os apenas punir por não seguirem as orientações fornecidas. Os pais necessitam de ser guiados neste processo. Para além dos profissionais que intervêm junto da criança é importante que possa haver alguém que possa intervir junto dos pais. Seja ao nível das competências parentais, terapia familiar, de casal ou outra configuração. Mas é importante que este aspecto seja tido em conta devido às necessidades sentidas e aos benefícios que pode haver no próprio processo da criança.
Partimos do principio que aquilo que dizemos aos pais depois de terminar a consulta com os seus filhos ou quando eles próprios são acompanhados é processado na sua globalidade e é posto em prática sem ser questionado. Mas não é verdade que isso aconteça. Por exemplo, se pensarmos no exemplo que os programas de intervenção para a erradicação do bullying em contexto escolar têm tido, podemos pensar naqueles que têm envolvido os próprios pares e como isso tem aparentemente tido melhores benefícios. Ou seja, quando eu que necessito de algo vou obter ajuda junto daqueles que reconheço como tendo necessidades iguais ou semelhantes às minhas a probabilidade de as integrar parece ser maior.
Ou seja, no caso do autismo parece que o facto destes pais poderem ouvir outros autistas adultos a falarem de si próprios, da sua condição, características, singularidades, cosmovisão, etc., a mesma parece ter um impacto maior na alteração da percepção que estes pais têm acerca dos seus filhos autistas e melhorarem a sua interacção com eles no quotidiano. Desde estes adultos autistas poderem avisar estes pais de determinados erros que possam vir a evitar porque estes já passaram por estas situações e são um testemunho importante acerca das situações a evitar. Por exemplo, é frequente que alguns pais que têm um filho autista refiram com alguma frequência que o seu filho/a autista parece não sentir alegria. Seja porque não diz ou parece ter dificuldade em o mostrar na expressão facial. Isso quando é dito aos filhos têm um impacto negativo e parece reforçar a ideia de não compreensão da sua pessoa. Um outro exemplo é quando os pais referem andar à procura de uma cura para a situação dos seus filhos e não compreendem porque eles não procuram fazer aquilo que lhes está a ser pedido. Ou de que haverá de uma maneira geral a necessidade de um acompanhamento dos pais ao longo da vida, ainda que possa haver um grau de autonomia nos seus filhos. Mesmo que as terapias melhorem algumas das características centrais do diagnóstico de PEA a pessoa irá continuar com determinadas necessidades de apoio e isso não deve ser olhado como negativo. Os exemplos poderiam continuar, passando pela questão de obrigar ou não a usar determinadas roupas que são difíceis de usar devido à hipersensibilidade táctil, etc.
É fundamental poder olhar para as pessoas, nomeadamente as pessoas com PEA e poder pensar que são aqueles/as que vivenciam desde sempre a sua condição e quem melhor para falar acerca dela. Claro que os profissionais são mediadores deste processo e têm conhecimento sobre a sua condição e sobre a sua pessoa com aquela condição. Mas a pessoa é quem a vivencia ao longo dos dias, semanas e anos. Os adultos autistas podem perfeitamente ser tutores de outros pais, sejam eles próprios autistas ou não, mas que principalmente possam necessitar dessa informação falada na primeira pessoa. A situação não é inovadora atendendo à própria existência dos grupos de auto-ajuda ou grupos de pais. Mas é preciso colocar essa prática em funcionamento na Perturbação do Espectro do Autismo no nosso pais. Que talvez por questões culturais e outras ainda possam demonstrar algum pudor ou receio neste processo.
Comments