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Foto do escritorpedrorodrigues

Autismo grisalho

Muitos já ouviram esta designação - geração grisalha, e que são as pessoas que se encontram acima dos 50 anos de idade. A Dona Palmira (nome fictício) há muito que passou os cinquenta. Está a seis anos de os dobrar. Ela é que costumava dizer que o seu autismo era grisalho. Ficou assim com o cabelo bastante cedo. Pelo menos comparado com a grande maioria das pessoas. Aos trinta e nove anos tinha o cabelo todo branco. Era de família. A sua mãe e antes desta a sua avó tinha sido igual. Não era a única coisa que trazia de família. Sempre se vestiu de cinzento. É a sua cor favorita. Fica a pensar porque é que as pessoas se metem com ela dizendo que a roupa combina com o cabelo.


Há cerca de vinte e nove anos que está num Lar. Entrou aos 65 para um lar pela primeira vez. A experiência foi horrível. Saiu ao fim de seis meses. Não se dava bem com as pessoas. E sentia ter mutas e boas razões para isso visto que não a tratavam bem. Apesar de naquela altura estar capaz de fazer algumas coisas, há tarefas do quotidiano que sempre foram uma maior dificuldade. Fazer comida, limpar a casa e tratar da roupa sempre foram coisas abomináveis para si. É verdade que aprendeu a cozinhar algumas coisas, mas a diabetes levou à necessidade de maiores cuidados na alimentação e não só. E ainda que saiba fazer a limpeza da casa e tratar da roupa, a força física há muito que lhe falta.


E porque é que não ficou em sua casa e passou a ter uma equipa de apoio domiciliar a ir a sua casa, perguntam-se alguns. Isso chegou a ser ponderado e até testado, mas a Dona Palmira incompatibilizou-se com a equipa. Além de não serem sempre os mesmos, alguns mexiam-lhe nas coisas e ela não gostava nada. E a comida não era bem como ela estava habituada. E além disso estava sempre a mudar, porque a pessoa que fazia a comida também era uma pessoa diferente. E nem sempre cumpriam os horários para chegarem a sua casa.


E se essa hipótese não foi possível, porque não ponderaram a ida para casa de um familiar, perguntam-se. A sua mãe já não era viva. Suicidara-se quando a Palmira tinha vinte e três anos. Nunca conheceu o seu pai. Os seus três irmãos mais novos há bastantes anos que não os vê ou fala com eles. A sua relação nunca foi grande coisa. A sua mãe obrigava-a a tomar conta deles. A Dona Palmira é a mais velha deles e além disso é mulher. E naquela altura isso significava sacrificar-se pela família. Coisa que ela nunca percebeu. Fez enquanto foi obrigada e saiu de casa logo que pode. Ainda chegou a pensar muitos anos que a sua mãe se suicidara por ela ter ido embora. A Dona Palmira tem-se a si. Na verdade sempre foi assim que a vida lhe foi correndo. A mãe trabalhava o dia inteiro e os irmãos ficavam cada um para seu lado e juntavam-se na altura da comida. E ninguém falava à refeição. A mãe da Dona Palmira não permitia essa falta de educação. E a Dona Palmira agradecia, pois era um momento de sossego para sim. A sua mãe tinha mais outras tantas regras. Provavelmente eram necessárias. Era mãe sozinha a tomar conta de três filhos. Sim, três filhos, pois a a Dona Palmira criou-se sozinha. E ela agradece que assim o tenha sido. Até porque ser criada pela sua mãe significava para si terminar como ela própria terminou a sua vida. E do seu pai não diz nada pois este nem sequer ficou para a conhecer. E quanto aos irmãos nem pensar, até porque a Dona Palmira teve exemplos que chegue de homens que a maltrataram. Chegou mesmo a agradecer nunca ter conhecido o seu pai. Nunca casou. Nunca quis. Nunca acreditou. Diz não ter tido razões para isso. Acrescenta que não haveria de ter paciência. Fosse por causa das suas rotinas e de não entender boa parte dos hábitos dos outros. Preferiu a vida assim, presa a si mesma.


No Lar, uma das vezes que foi observada pelo médico, este perguntou-lhe pela sua vida. Palmira não percebeu. Tinha ido queixar-se das dores de cabeça. O ruído no lar continuava ensurdecedor. Dizia que de noite tudo lhe fazia confusã, sempre fizera. E de dia não gostava que andassem atrás de si para tudo e para nada. O médico continuava a perguntar-lhe mais coisas. Coisas específicas. Chegou a perguntar-lhe se tinha tido algum diagnóstico psiquiátrico no passado. Disse-lhe que tristeza, muita tristeza. Mas que não sabia se isso seria diagnóstico. Ficaram ali mais de hora e meia. Ao fim desse tempo o médico falou-lhe de autismo. Dona Palmira respondeu-lhe que já não tinha ninguém na família. Levantou-se e foi embora. Era hora do lanche.


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