Os meus pais sempre me ensinaram a ser eu próprio. Diz Artur (nome fictício), autista de 27 anos. Em casa sempre foi esse o exemplo que vi e com que cresci. E do que me tem valido?, pergunta Artur, com ar de quem sabe a resposta. As pessoas, principalmente as que não me compreendem e parecem insistir em não me querer compreender, sejam não autistas ou autistas. Essas, vão continuar a ter muita dificuldade em aceitar algumas das coisas que tenho para dizer. E da forma que por vezes as digo!, conclui Artur. Além de já me terem explicado que eu tenho um deficit ao nível do filtro social e que isso faz parte da minha condição. Não é suposto nós sermos verdadeiros, honestos, genuínos?, continua. E se digo o que penso, e então? Aquilo que penso tem a ver com a situação em si que estou a viver ou a assistir. Não estou a dizer nada de estranho em relação à situação, mas sim aquilo que penso. Isso é um problema?, volta a questionar. Afinal o que é que as pessoas, sejam não autistas ou autistas querem? Decidam-se! E de caminho que me expliquem o que é que significa autenticidade? E o que significa autenticidade no autismo?, conclui o Artur. E a partir dali tivemos muitos e demorados diálogos em torno da questão.
É consensual que a autenticidade é uma parte importante da saúde mental e do bem-estar geral. Mas afinal do que estamos a falar quando nos referimos à autenticidade? O termo é usado para descrever uma série de construções na literatura académica, da sinceridade à veracidade e à originalidade. No entanto, uma definição sucinta e simples de autenticidade é ser verdadeiro consigo mesmo.
Falar de autenticidade é incontornável não falarmos de Heidegger. E para este a autenticidade é a singularização da existência, isto é, é a apropriação de si, é a tomada de consciência do Ser-aí, é a sua real abertura às mais diversas possibilidades. É o momento da compreensão mais profunda em que o Ser-aí se abre ao mundo e se relaciona concretamente com as coisas.
Apesar do conceito de autenticidade pertencer durante muito tempo ao ideal moral. É no seguimento do pensamento de Heidegger, mas também de Rosseau, que a perspectiva existencialista, se apropriada dela e a transporta para a intervenção psicoterapêutica. E com ela pretende ajudar o cliente a escolher-se e a agir de forma cada vez mais autêntica e responsável.
Mas viver autenticamente pode significar ter de abandonar determinados comportamentos e abstermo-nos de moldar para nos adaptarmos aos outros. Sendo que esta parte do processo pode envolver dizer adeus a pessoas que não nos aceitam tal como somos. Este pode ser um processo doloroso. E podem surgir situações de maior vulnerabilidade à medida que desvendamos as nossas vidas, desligamos de determinadas coisas e relações, e ligamos tudo o que nos resta de uma maneira que represente melhor quem realmente somos.
E no caso das pessoas autistas? Sim, que autenticidade vivem as pessoas autistas? O Artur costuma frequentemente dizer - O que é que as pessoas esperam de mim? Alguns deles nem sequer sabem o menu nome, idade, ou que mais gosto de fazer quando estou em casa. E ainda assim esperam coisas de mim! Na escola, durante todos os doze anos que lá andei, esperavam que eu aprendesse. Até ai, não parece nada de novo. Mas depois também queriam que eu aprendesse tal qual eles diziam para fazermos. E se eu perguntava alguma coisa que fugia ao que estavam a dizer, respondiam-me que não podia ser assim. E os meus colegas, muitas dessas vezes, ainda por cima riam e também gozavam. E também esperavam que o meu comportamento fosse diferente. Que estivesse quieto, que não estivesse constantemente a levantar-me. Diziam-me que as pessoas aprendiam melhor sentadas. Mas depois quando perguntei se isso queria dizer que o professor não aprendia porque estava quase sempre de pé, os meus colegas riram-se e o professor disse para eu ir ter com o director. Esperavam que eu comesse tudo até ao fim na hora do almoço e nem sequer se importavam em saber sequer se eu gostava daquela comida. Simplesmente diziam para eu a comer toda. Ou quando diziam que eu não aguentava fazer determinada actividades e que parecia ser um desmancha prazeres. Se eles soubessem que o barulho e o ajuntamento de pessoas num mesmo lugar me fazia uma confusão tremenda! Estavam sempre à espera de algo da minha pessoa. Até em casa, os meus pais e os meus irmãos esperavam coisas de mim. Artur, faz isto, Artur, não faças isso. Ou não faças assim, faz antes desta maneira. Assim está mal. Muito do que eu fazia estava mal, errado, incorrecto, lento, fora de tempo, descoordenado, desadaptado, Nada parecia certo. E ainda por cima, muitas das pessoas se queixavam que eu não esboçava um sorriso. O que estavam à espera? Algumas das vezes, nem eu próprio percebia o que estava a sentir. Sorrir para quê, para quem, e porquê? Com tantos a esperarem coisas de mim, durante muito tempo eu não esperei nada de mim mesmo. E isso, talvez tenha sido o maior dos meus erros, porventura o único. Decidia pelos outros e não por mim. Por isso, quando cheguei ao final da adolescência não sabia o que era ou sequer quem era.
O autismo refere-se a um grupo heterogéneo de perturbações do neurodesenvolvimento definidos pelo comportamento, associados à presença de déficits de comunicação social e comportamentos restritos e repetitivos. Embora a prevalência do autismo pareça estar a aumentar e diversas ciências direcionem para diferentes explicações sobre as causas do autismo, a forma como devemos entender o autismo ainda não é bem compreendida e permanece pouco estudada. A autonomia é um conceito essencial na ética médica que merece um escrutínio especial na compreensão de condições como o autismo, pois constitui um pré-requisito para a pessoa poder tomar as próprias decisões e criar a vida que se deseja levar. E como tal fazer julgamentos sobre ser permitido moldar a própria vida, ou se alguém precisa ser protegido, precisa ser feito com muito cuidado e requer uma análise conceptual clara. A autonomia é definida em relação à capacidade de um pensamento racional ou tomada de decisão: a pessoa autónoma deseja "ser um sujeito, não
um objeto ”e é autoconsciente. Isso implica que se está ciente de seus pontos fortes e fracos e assume a responsabilidade para as suas escolhas. As condições necessárias para a
autonomia são uma interação complexa de valores necessários: consciência, aceitação, compreensão e conhecimento sobre si mesmo e ao mundo.
No entanto, a abordagem principal para estudar o autismo tem-se concentrado principalmente no comportamento das pessoas autistas, incluindo na sua capacidade de empatia com os outros e de se adaptar às convenções sociais. Frequentemente o Artur traz para as conversas coisas acerca das suas leituras. E algumas vezes o Artur lê alguns artigos científicos que se se debruçam sobre o autismo. Desde essa altura que eu penso cada vez mais que nós investigadores e clínicos precisamos de escutar, até mesmo num contexto fora do ambiente psicoterapêutico os autistas e o que eles pensam não apenas sobre si próprios, mas também sobre a sua condição e como a mesma é procurada entender. Ainda a semana passada vinha zangado com meia dúzia de folhas imprimidas debaixo do braço. Dizia, Como é que é possível que pessoas que se dizem tão inteligentes escrevam coisas como estas? De uma forma global a frase a que o Artur se referia dizia que os autistas têm um deficit de empatia.
Além disso, em casos de autismo, a autonomia é frequentemente confundida com outros conceitos, sem uma reflexão adequada sobre suas implicações para a tomada de decisões no contexto médico e na tutela. O próprio diagnóstico de autismo parece ser um motivo de cepticismo sobre a autonomia da pessoa autista. Ao mesmo tempo, as pessoas autistas também são frequentemente descritas como talentosas, obstinadas e originais, o que está associado ao conceito de autenticidade. Ou as pessoas autistas não são facilmente influenciadas por outras pessoas, seja por são mais inflexíveis ou rígidas na sua forma de ser e pensar. Mas também são muitas outras coisas. Tal como o Artur o diz e muito bem. As pessoas conhecem-nos apenas em determinados momentos, por vezes minutos. E começam logo a fazer conjecturas em relação a quem nós somos e que já sabem quem nós somos só porque eu ou algum lhes disse que eu sou autista. As pessoas não sabem que eu sou. Nem eu próprio sei quem eu sou. Mas ainda assim não deixam de dizer um chorrilho de coisas acerca da minha pessoa. E a maior parte das vezes isso magoa-me.
Essas perspectivas representam um ponto de partida interessante para a nossa compreensão do autismo, visto que parecem direcionar em diferentes direções: embora as pessoas autistas possam ser constrangidas na realização de tarefas da vida diária e não simplesmente obedecer às convenções sociais, elas são individuais e independentes à sua própria maneira e seguindo os seus interesses genuínos.
A autenticidade implica aceitar a condição humana tal como é vivida e conseguir confrontar-se com a ansiedade e escolher o futuro, reduzindo a culpabilidade existencial. A autenticidade caracteriza a maturidade no desenvolvimento pessoal e social. E a escolha é um processo central e inevitável na existência individual e a liberdade de escolher-se envolve responsabilidade pela autoria do seu destino e compromisso com o seu projecto. A liberdade de escolha não só é parte integrante da experiência como o indivíduo é as suas escolhas: a identidade e as características do indivíduo seriam consequências das suas próprias escolhas.
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