Penso que nunca ninguém terá assistido a nenhum evento público num espaço para centenas ou milhares de pessoas celebrarem o consumo de drogas, certo? E não estou propriamente a pensar em qualquer festival de música! E o mesmo perguntaria para o álcool ou tabaco. Ou seja, nunca se ouvir falar de um evento em que o objectivo seja ver qual é a pessoa que consegue consumir a maior quantidade de drogas, álcool ou tabaco num curto período de tempo em competição com outros, certo? Mas no caso dos videojogos temos assistido nos últimos tempos a uma multiplicação de eventos a celebrar precisamente esta área.
Nos últimos 10-15 anos temos assistido a uma ascensão do mundo dos videojogos, seja na variedade mas também na qualidade dos próprios jogos. São cada vez mais o números de utilizadores e dentro de uma gama variada de idades que são alcançados pelos jogos lançados. Desde 2013 através da DSM e em 2018 a partir da proposta da OMS, passou a estar presente enquanto proposta na primeira e com maior certeza da segunda que os comportamentos de adição aos videojogos pela internet deveriam ser considerados como uma perturbação diagnosticada. Sendo que esta deverá ser vista como uma perturbação isolada de outras perturbações associadas, e com um conjunto de critérios associados para a sua classificação.
Para além dos murmúrios na comunidade cientifica relativamente à validade dos critérios e dos instrumentos de avaliação propostos para avaliar esta condição. Há um conjunto de outros intervenientes que se têm insurgido. Nomeadamente, as pessoas pertencentes à comunidade de videojogos, sejam os designados como profissionais, mas também aqueles que jogam de forma mais casual. Os pais são um outro grupo que tem murmurado acerca deste tema. Seja porque alguns estão sem saber como fazer frente a um conjunto de dificuldades e desafios que lhes são colocados no quotidiano familiar. Mas também porque sentem que os seus filhos poderão estar a apresentar outros comportamentos problemáticos e que parecem estar a comprometer o desenvolvimento. Nomeadamente, nos problemas associados ao baixo rendimento académico, mas também na maior dificuldade em desenvolverem outras actividades para além dos videojogos. Já para não falar da questão do isolamento social que alguns pais assistem nos filhos a ficarem cada vez mais tempo nos seus quartos a jogar.
A situação parece ter ficado ainda mais complexa quando o mundo dos videojogos passaram a estar também disponíveis nos smartphones e os videojogos passaram a ter uma maior mobilidade. Sendo que para além dos videojogos, as próprias redes sociais passaram também a ter uma presença destacada na vida de todos nós e o consumo de tempo associado às Tecnologias de Informação e aos ecrãs passou a ser maior.
No entanto, e apesar da DSM 5 propor a classificação da perturbação de adição aos videojogos pela internet e a OMS ter referido há um ano que esta é sem margem de dúvida uma perturbação. O certo é que continuamos a assistir a uma proliferação de eventos públicos para a promoção dos videojogos. Seja através dos e-sports mas também de outros eventos como a Lisboa Games Week, entre outros. Na introdução deste post perguntava em tom irónico se alguém já tinha assistido a um evento para celebrar o consumo de drogas. Mas para além desta ironia forçada, o certo é que no caso de estarmos a falar de uma perturbação associada aos videojogos pela internet, pergunto-me se seria suposto promover eventos relacionados com esta área!?
As questões podem parecer disparatadas ao principio mas penso que a reflexão deve existir, neste e em campos próximos. Por exemplo, não deixa de ser curioso que há uns anos para cá se vem falando da despenalização das drogas leves e da agitação que isso causa na Sociedade. E agora mais recentemente quando se falou das salas de consumo assistido a agitação ainda foi maior. Mas depois temos a situação em que parece haver uma celeuma imensa na Sociedade relativamente à forma como os jovens e não só parecem estar a ficar dependentes das tecnologias. E assistimos à promoção de eventos para celebrar os videojogos quando existe uma perturbação de videojogos pela internet. Confuso, certo?
Não pensamos que as pessoas que jogam videojogos são todas pessoas com uma perturbação. Seria absurdo considerar tal coisa. Sabe-se inclusive que em Portugal há uma percentagem mínima de 1,8% da população que apresenta comportamentos problemáticos relacionados com os videojogos. Ou seja, a maior percentagem de utilizadores dos videojogos apresenta um perfil de jogo saudável. No entanto, isso não significa que essa percentagem não seja importante de ser considerada. E para além disso há uma outra percentagem que não sendo problemática não deixa de apresentar algum compromisso.
Para além disso, precisamos de falar que associado à questão dos comportamentos problemáticos com os videojogos encontramos um conjunto de outros indicadores igualmente preocupantes. Sejam de ordem de saúde mental, nomeadamente, maiores níveis de depressão e ansiedade. Mas de ordem psicossocial também, sejam rendimentos mais baixos em termos escolares mas também níveis de isolamento social. Ou seja, não é apenas uma questão isolada de alguém que tem dificuldades em regular o seu tempo de utilização dos videojogos. Há uma gama variada de questões problemáticas associadas e que precisam de ser contempladas, seja na compreensão mas também na prevenção e intervenção.
Quando na nossa intervenção com pessoas com problemas relacionados com os videojogos, eu e o meu colega João Faria, pensamos sobre a forma de intervir e se fará sentido a abstenção completa por parte do cliente. Ou seja, fará sentido que a pessoa que apresenta uma perturbação relacionada com os videojogos abandone completamente a actividade de jogar antes de iniciar o acompanhamento? Esta questão coloca-se porque estamos a falar de comportamentos de adição, ainda que sem substâncias, mas não deixam de ser comportamentos de adição. A questão não é consensual nem de fácil decisão. Até porque muitos dos meus clientes com uma Perturbação do Espectro do Autismo acabam por ter este tipo de problemática devido às características do próprio diagnóstico. Seja porque os videojogos fazem parte dos seus interesses restritos. Ou porque a actividade de jogar faz com que se sintam capazes e socialmente activos, entre outras razões. É importante considerar o papel que os videojogos têm na sua vida. E como tal a retirada completa dos videojogos deve ser repensada.
Mas também é fundamental procurar compreender como é que esta dificuldade relacionada com os videojogos ocorre ao longo da história de vida da pessoa. E aqui estaremos a falar da importância que a prevenção tem neste campo. E de como podemos ajudar as pessoas e as famílias a aprender a lidar com as tecnologias de informação de modo saudável e integrado num plano de vida mais amplo. E continuar a pensar que uma percentagem significativa de pessoa joga de forma saudável. E que se ensinarmos as pessoas a jogar essa actividade pode tornar-se proveitosa seja do ponto de vista do prazer mas também da capacitação de determinadas competências suas.
E é aqui que entra o modelo da redução de danos. Não é nenhuma novidade, atendendo a que é algo que se tem vindo a aplicar na área ligada às adições com substância. Ou seja, este modelo é um conjunto de políticas e práticas cujo objectivo é reduzir os danos associados ao uso de drogas psicoativas em pessoas que não podem ou não querem parar de usar drogas. Por definição, redução de danos tem um foco na prevenção aos danos, ao invés da prevenção do uso de drogas; bem como um foco em pessoas que continuam a fazer o consumo de drogas.
Se pensarmos, este modelo pode ter uma boa adaptação à questão dos videojogos visto que é uma actividade que desenvolvida de forma moderada e saudável não irá causar prejuízo na vida da pessoa. E assim, ao invés de nos andarmos a esforçar em diabolizar o tempo usado nas tecnologias e nos videojogos. Poderíamos pensar em como integrar de forma mais capaz as tecnologias na nossa via.
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