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Foto do escritorpedrorodrigues

As vozes não ditas que nunca foram ouvidas

Joana (nome fictício) e Rodrigo (nome fictício) tinham casado há pouco menos de um ano, mas já se conheciam desde sempre. Andaram juntos na escola desde a pré-primária. Havia muita coisa que sentiam que não precisavam de dizer um ao outro. Bastava olharem-se e compreendiam-se. E aquele momento que estavam a viver era único. Joana estava grávida de gémeos. Rodrigo só tinha olhos para a Joana. Joana só tinha olhos para a sua barriga que cresciam a olhos vistos como se costuma dizer. As expectativas, os sonhos, as ânsias era mais do que muitas e duplicadas por quatro. As da Joana e Rodrigo e mais os dois bebés que estavam para chegar. Quer a Joana e o Rodrigo não tinham grande informação sobre isto de ter bebés. Pais de primeira viagem como se costuma dizer. Mas também filhos únicos e além disso a família de ambos não é grande e nunca se depararam ao longo destes anos com familiares com bebés pequenos. Além disso Joana e Rodrigo têm um mesmo grupo de amigos e que não passa de três pessoas com quem convivem com escassa frequência. Pelo menos nos últimos anos. Rodrigo é bancário e Joana engenheira química.


O dia do parto, além de demorado, correu tudo bem e a felicidade foi a quadruplicar. Eram bebés diferentes, o José Maria (nome fictício) e a Carolina (nome fictício). Mas nada de mais. Os próprios médicos nunca disseram nada acerca do que fosse. Após uns dias no hospital foram para casa e as coisas foram acontecendo como normalmente acontece. Tudo era novidade, seja para o Zé Maria e Carolina, mas também para a Joana e o Rodrigo. Aquilo parecia uma felicidade conjunta. Joana era um pouco mais ansiosa e ao fim de algum tempo começou a perguntar ao Rodrigo se ele já tinha ouvido os filhos a dizerem alguma palavra. Rodrigo era um pouco mais desligado e era preciso perguntar-lhe as coisas. Mas nada, nenhuma palavra. A Carolina já tinha feito alguma tentativa de balbucio. E realmente a Carolina foi a primeira a começar a falar. Joana e Rodrigo há muito que esperavam pelas primeiras palavras. Assim como os bebés têm um desejo inato de aprender a falar, os pais parecem programados para se deliciarem ao ouvir as suas vozes pela primeira vez. Mamã!! Mamã!! Joana, gritou Rodrigo, Joana!?! Calma, disse-lhe ela. Ainda me assustas! O que foi?, perguntou-lhe. Rodrigo não conseguia dizer uma palavra e apenas apontava para a Carolina. Mamã, mamã!!, ouviu-se novamente. Os olhos de ambos encheram-se de lágrimas tingidas de uma alegria única. Pegaram na Carolina e ficaram ambos a olharem-na. Só ao fim de um pouco é que se lembraram do Zé Maria e Joana encheu-se de culpa por isso.


Ao fim de dois, três dias, a culpa de Joana passou a ser invadida de angustia. Zé Maria continuava sem falar. Carolina tinha começado a falar as primeiras palavas aos 10 meses. A angustia foi permanecendo e crescendo. Continuou a crescer até perto dos três anos. Altura em que sentiram não conseguir aguentar mais. Mudaram de Pediatra e procuram uma outra resposta ao que se poderia passar com o seu filho. Na altura, Joana e Rodrigo ficaram ainda com menos palavras do que aquelas que lhes são habituais. A Pediatra disse-lhes que o José Maria tinha um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo. Iniciaram de imediato a Terapia da Fala e todas as outras intervenções. Mas Joana e Rodrigo estavam centrados na Terapia da Fala. O Zé Maria não havia forma de falar. Aos 8 anos de idade, José Maria tinha um discurso ligeiramente funcional, assim como cerca de 25% a 30% das pessoas autistas. Ao menos conheço a voz do meu filho, ainda que não saiba como é a sua conversa, dizia Joana, com uma voz mais arrastada e melancólica. Rodrigo, iniciou na altura a sua terapia. Não estava a conseguir lidar com tudo aquilo. Dizia que sonhava frequentemente com o seu filho Zé Maria a falar consigo. Há dias em que nem me apetecia acordar, dizia Rodrigo. Ali no sonho o meu filho falava comigo. Nem dizia nada à Joana porque sei que ela iria ficar ainda mais angustiada e talvez zangada comigo, referiu.


Os anos foram passando. Joana continuou a ficar mais e mais melancólica. Fechada cada vez mais sobre si própria. A própria Carolina ressentia-se bastante e na passagem para o 5º ano também começou a fazer terapia. A ansiedade e a tristeza acompanhavam-na há algum tempo e Rodrigo achou que seria altura de a levar ao psicólogo. A sua própria terapia parecia estar a resultar e Rodrigo estava a ficar um pouco mais solto. E assim as coisas foram continuando.


As lutas com as escolas do Zé Maria foram uma constante. A maior delas tinha a ver com o facto de frequentemente dizerem que o Zé Maria era uma criança autista de baixo funcionamento. Aquilo tirava o Rodrigo do sério. A Joana parecia ela própria ter desistido de tudo aquilo, Rodrigo percebia que a sua esposa estava muito deprimida, mas ela própria recusava-se a fazer qualquer tipo de tratamento. Rodrigo aceitava a Joana tal qual ela era. Sempre fora assim e assim continuaria. Em contrapartida, Joana passou a ler mais e mais sobre o autismo e mais especificamente sobre o autismo não verbal. Ainda que o termo não lhes agradasse em nada. Até porque não verbal deriva da palavra latina sem palavras. E não era o caso do Zé Maria. Mas ambos já tinham aprendido que no autismo há muita coisa escrita que não significa aquilo que na realidade se passa. E além do mais, estas designações perpetuam a suposição imprecisa de que as pessoas sem discurso são incapazes de usar de uma forma completa as palavras. E de facto, muitas pessoas autistas não verbais comunicam usando palavras, mesmo que não comuniquem ao falar essas palavras. Mas em vez disso, escrevem-nas, usam linguagem gestual, cartões com letras e icons, etc.


José Maria tem agora 32 anos. Diz que se tornou pescador. Passa muitos dias junto ao mar. Joana e Rodrigo descobriram isso e há alguns anos atrás que se mudaram para uma casa junto à praia. A vida de todos eles foi mudando. A Joana tem estado mais próxima de si e do Zé Maria. Ele acabou por ficar em ensino doméstico e Joana assegurou grande parte destas funções. A mudança deu-se muito nessa altura. Parecia que a Joana procura o seu novo lugar na família. Parecia um átomo solto à deriva, e que já não sabia a que equação pertencia, dizia Joana a brincar.


Zé Maria tem passado muitos dos seus dias sentado à frente do mar. Quase literalmente à frente do mar. É a forma como ele gosta. Diz-se pescador de palavras. Foi uma brincadeira que Joana usava com ele quando o Zé Maria aprendia. Ao fim do dia quando Rodrigo chegava a casa o Zé Maria pedia-lhe para ler em voz alta junto ao mar. O seu filho acreditava que o mar lhe dizia se tinha de corrigir alguma parte das suas histórias. Como? O Zé Maria era o único a sabê-lo. Assim nós o soubéssemos escutar.


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