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As rugas do meu autismo

O que a traz cá desta vez? pergunta o médico. A senhora Clotilde (nome fictício) não respondeu. O médico aproximou-se. O que a traz cá desta vez? pergunta novamente num tom mais alto. O neto da senhora Clotilde que a tinha vindo acompanhar bateu à porta. Ele tinha ouvido que o médico falou mais alto e lembrou-se que a avó não ouve bem, mas recusa-se a usar um aparelho auditivo. Posso entrar? perguntou o neto. O médico aceitou. A minha avó não ouve bem, mas não é apenas isso que lhe dificulta a vida, disse. A senhora Clotilde nem tinha percebido que o neto tinha entrado.


A grande parte das vezes temos de a lembrar de tomar os comprimidos, diz o neto. E tem ideia se a situação tem piorado nos últimos anos? pergunta o médico. Não sei responder. A minha avó não é pessoa de ter a gente lá por casa muito tempo. Ao fim de um pouco vai para o quarto e quando damos conta já não volta. Acabamos por sair, diz. Mas o meu pai diz-me que ela sempre foi assim para o esquecido, pelo menos com algumas coisas, refere.


Avó, porque é que não conta as coisas todas ao médico? pergunta-lhe o neto. Achas que ele quer saber de mim? diz-lhe esta. O neto fica sem saber muito bem como continuar a insistir. Mas avó, é importante que você partilhe as coisas com o médico se não ele não a consegue ajudar! insiste. Assim como todos os médicos a quem fui contando as coisas? pergunta-lhe a avó. Achas que é a primeira vez que vou ao médico? pergunta-lhe num tom mais ríspido. Passei mais de cinquenta anos da minha vida sem que um médico me dissesse o que é que verdadeiramente se passava comigo, refere. Disseram-me de tudo. Que tinha depressão, ansiedade generalizada. Até houve um médico que me disse que aquilo que eu queria era receber a atenção das pessoas, continua. Já pensaste numa coisa dessas? pergunta-lhe a avó. Logo eu que apenas desejei ao longo de toda a minha vida que me deixassem em paz, refere. Foi preciso chegar aos cinquenta e nove para levar toda a informação que recolhi sobre o autismo a um psicólogo para que pudesse ser diagnosticada com autismo, diz. Cinquenta e nove anos, percebes? diz-lhe. Neste momento tu tens vinte e oito anos, continua. Consegues imaginar se toda a tua vida até então fosse sofrimento misturado com a incógnita de não saberes o que se passa contigo? pergunta ao neto. Mas porque é que a avó não diz ao médico que é autista? pergunta este ingenuamente. E achas que vale a pena? responde-lhe logo esta. Eu posso dizer-lhe sobre as dificuldades que tenha em me conseguir concentrar e ele vai ficar a pensar que é uma coisa degenerativa quando não o é, refere-lhe. E todas as sensações que tenho por causa dos ruídos que oiço. É bem provável que vá achar que são coisas da minha imaginação. Já não seria o primeiro, diz-lhe. Já experimentou perguntar ao psicólogo que a diagnosticou se conhece algum médico que atenda pessoas idosas e que tenha conhecimento do autismo? pergunta-lhe o neto. A avó ficou sem resposta. Tocou-lhe na mão e foi para o quarto descansar. Era o sinal para o neto sair.


O autismo é uma condição ao longo da vida. E uma percentagem significativa das pessoas autistas vão tornar-se adultos. E se sabemos pouco sobre as pessoas autistas adultas. Ainda menos sabemos sobre as pessoas autistas idosas.


No entanto, sabemos acerca daquilo que são os processos normativos do desenvolvimento. E que por exemplo, a partir dos 50 anos de idade se começa a observar um certo declínio em algumas das funções cognitivas. Além disso podemos pensar que numa percentagem significativa de pessoas autistas, elas próprias já têm um perfil cognitivo mais baixo. Facto que terá um impacto maior quando associado ao processo de envelhecimento.


E se pensarmos que as pessoas idosas, ou pelo menos algumas delas, passam a necessitar de algum tipo de resposta residencial, será fundamental poder pensar nas respostas das estruturas de apoio para as pessoas idosas autistas. Isto porque as necessidades que se foram verificando ao longo da vida, nomeadamente as questões sensoriais, irão poder continuar a estar presentes. Além disso, a própria relação com os prestadores de cuidados nos lares residenciais, assim como com os outros ocupantes dos lares, leva a considerar uma necessária preparação para que este processo possa decorrer da melhor forma. Mas também no caso daquelas pessoas autistas idosas que vão ficar ao cuidado da sua família é importante que os cuidadores informais possam ter conhecimento das suas necessidades.


Um outro aspecto sobejamente importante prende-se com a prestação de cuidados de saúde neste grupo. Até porque sabemos que as pessoas autistas têm uma maior probabilidade de terem um conjunto variado de comorbilidades. E que além de se manterem persistentes ao longo da vida, também irão ter um impacto aumentado ao longo dos anos. Além da saúde mental, os aspectos da saúde física também é uma preocupação, não só porque a partir dos 65 anos passa a haver um maior números de situações de saúde mais agravadas. Mas além disso, é sabido que no autismo há uma maior propensão para o compromisso das condições de saúde.


É urgente mudarmos a forma como olhamos para o autismo. E além de podermos aceitar que esta é uma condição que acompanha as pessoas ao longo da vida. É fundamental que isso transpareça na prática de todos nós. Seja dos profissionais de saúde, e em principal destaque naqueles que acompanham as pessoas adultas e sénior. Não que não seja necessário uma igual reflexão para aqueles que acompanham crianças e jovens. No entanto, a disparidade e o desconhecimento relativamente ao autismo nestas fases da vida é gritante. E leva a causar um agravamento ainda maior das condições de vida e de qualidade de vida das pessoas autistas num período bastante grande da sua vida. Mas não são apenas os profissionais de saúde. Somos todos nós Sociedade que precisamos de olhar para as pessoas e para a expressão da diferença como parte integrante da expressão humana.


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