Alguns de vocês ainda estarão recordados dos anúncios do gás pluma carregado por uma jovem até casa do utilizador. Mas fiquem tranquilos que não irei anunciar nada nesse campo, ainda que o titulo do texto de hoje seja As miúdas do gás.
Este titulo apareceu-me na cabeça e com as letras da t-shirt em complemento por causa da Borderline Personality (BP). Ou seja, estas miúdas que parecem que têm sempre muito gás, seja do ponto de vista energético e físico, mas também do ponto de vista mental e temperamental, mais especificamente.
Cada vez mais vamos tendo jovens raparigas ou mulheres adultas que nos vão chegando à clinica com diagnósticos anterior de Perturbação da Personalidade Borderline, mas que ainda assim têm dúvidas se não poderá ser algo no espectro do autismo. Mas também vamos tendo colegas psicólogos ou psiquiatras que nos vão colocando a questão se esta ou aquela utente não poderá ter um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo, ou se será mesmo Perturbação da Personalidade Borderline, mas também se não haverá comorbilidade entre ambas, e como é que se consegue e pode fazer um diagnóstico diferencial. Como podem ver, as questões são muitas e colocadas por várias pessoas diferentes e com background profissional diferente, o que leva a antecipar que a resposta a estas questões é bastante desafiante.
O autismo sem a presença de uma dificuldade intelectual e desenvolvimental é diagnosticado mais tarde e com maior dificuldade nas raparigas/mulheres do que nos rapazes/homens. Para as raparigas e mulheres autistas, o percurso para um diagnóstico de autismo pode incluir um ou mais diagnósticos errados. E o diagnóstico incorrecto de Perturbação da Personalidade Borderline (PPB) ou de traços borderline pode ser particularmente frequente. Até porque as características frequentemente observadas em raparigas e mulheres autistas podem contribuir especificamente para um risco de diagnóstico incorreto de PPB.
Em primeiro lugar quero fazer a ressalva que um dos aspectos que pode levar a esta dificuldade passa pelo fenótipo comportamental do autismo no feminino e das diferenças deste em comparação com aquilo que a maioria das pessoas parecem reconhecer no autismo como pertencendo aos rapazes. Em segundo lugar chamo a atenção para a possibilidade de observarmos com mais frequência o comportamento de camuflagem social nas raparigas/mulheres. Ou seja, as mulheres autistas podem apresentar um conjunto de comportamentos sociais mais e melhor desenvolvido e que pode ofuscar a leitura clinica de que estejam integradas no espectro do autismo, precisamente por apresentarem aparentes competências de interacção e comunicação social. Contudo, é possível desmontar este comportamento de camuflagem social na mulher autista e perceber que é algo que existe de uma forma mecanizada e não espontânea.
Para que fiquem com uma ideia aproximada de como poderá ser desafiante este diagnóstico, partilho com vocês algumas ideias. Por exemplo, uma mulher poderá reportar em contexto clínico que desde sempre teve dificuldades nas interações sociais. E que estas relações sempre foram instáveis e até mesmo explosivas. E que ainda assim, foi demonstrando alguma vontade em ter algumas relações interpessoais e sociais, mesmo que estivesse muito frequentemente e ainda hoje uma angustia de não ser validade e poder ser abandonada na relação. Além disso, a pessoa sublinha a grande instabilidade emocional e os altos e baixos do seu humor descontrolados. Assim, como em alguns momentos mais difíceis com a presença de comportamentos de auto-mutilação. Sendo que alguns deles também foram ocorrendo em situações de maior impulsividade. Bem como alguns consumos de álcool. E que de uma forma recorrente lhe foram trazendo a sensação de um vazio do ponto de vista da sua identidade. E com vários episódios de ira e raiva mais descontrolada.
Ao lermos esta descrição podemos ficar com uma ideia quase absoluta de que se trata de um diagnóstico de Perturbação da Personalidade Borderline. E não quero dizer que não o possa ser. Mas também pode ser uma Perturbação do Espectro do Autismo (nível 1) no feminino.
A adolescência pode ser uma altura particularmente vulnerável para as raparigas autistas, talvez ainda mais do que para os rapazes autistas. O aumento da proeminência e influência do grupo de pares, e as expectativas de independência crescente no funcionamento adaptativo durante a adolescência são susceptíveis de apresentar desafios para os jovens autistas, independentemente do sexo. No entanto, as raparigas autistas enfrentam complexidades específicas de género: estereótipos relativos sobre o que significa ser uma rapariga ou uma jovem mulher, o uso de formas cada vez mais encobertas de agressão relacional entre as raparigas e a tendência para as amizades do mesmo sexo entre raparigas adolescentes serem caracterizadas por elevados níveis elevados de cordialidade e partilha interpessoal.
As semelhanças entre a PEA e a PPB não são imediatamente óbvias a partir de uma observação superficial dos seus respectivos critérios de diagnóstico. No entanto, como já referido anteriormente, para as raparigas/mulheres autistas, as diferenças de género na apresentação de traços autistas, juntamente com a camuflagem que esconde esses traços, podem significar que o perfil autista subjacente e e os desafios relacionados passam despercebidos até que o perfil emerge de forma mais proeminente durante a puberdade e a idade adulta jovem.
Este padrão de aparente emergência posterior de traços autistas, por sua vez, pode desmentir o carácter neurodesenvolvimental generalizado das características autistas destas pessoas, contribuir para o seu encaminhamento para profissionais cuja especialidade reside no diagnóstico e avaliação de perturbações psiquiátricas de adultos e não de crianças e, assim, contribuir para um diagnóstico incorreto.
As características comuns sugeridas são dificuldades nas relações interpessoais, "perturbação da identidade", suicidalidade recorrente, desregulação emocional, "sentimentos de vazio" e ideação paranoide em resposta a stressores agudos.
Pensando nas relações interpessoais instáveis e intensas, necessitamos de olhar para a história do neurodesenvolvimento no autismo, indicando diferenças precoces na comunicação social não atribuíveis apenas a factores ambientais ou a transacções temperamento-ambiente, e acompanhadas por outras de autismo (diferenças no processamento sensorial, comportamentos repetitivos e estereotipados, etc.). Mas também as aprendizagem de regras sociais, prática/ensaio, e camuflagem presentes no autismo mas
mas não na PPB. Assim como a aplicação de sistematização para compreender e navegar em situações sociais no autismo, mas não na PPB.
No que diz respeito ao esforço para evitar o abandono. Em termos gerais, verificamos a existência de níveis mais baixos de extroversão e níveis mais altos de introversão no autismo em relação `PPB. No autismo, a necessidade de estar sozinho para regular as emoções, versus a "intolerância" de estar sozinho ou de precisar dos outros para regular as emoções na PPB. Ou os gastos de energia para evitar estar sozinho em pessoas com PPB, enquanto que as pessoas autistas têm frequentemente a necessidade de estar sozinhas para recuperar e restaurar a energia depois de socializar (especialmente socializar no contexto de
camuflagem).
Referente ao que possa ser pensado como uma perturbação da identidade, no autismo são mais facilmente atribuíveis à camuflagem e aos impactos do estigma e do stress das minorias que conduzem à camuflagem. A apresentação comum de identidades e experiências de género no autismo pode confundir a aplicação dos critérios de diagnóstico da PPB em pessoas com questões de identidade de género. Em pessoas com PPB, os "problemas de identidade" também podem ser atribuídos, em parte, a stress social e ao estigma, mas podem ser distinguidos pela camuflagem, que ocorre no autismo mas não na PPB. Deve ter-se o cuidado de distinguir a camuflagem autista das personalidades "como se" e da "competência aparente descritas em pessoas com PPB.
Os aspectos da impulsividade e dos comportamentos de auto-dano, no autismo, a impulsividade pode ser melhor explicada pela coocorrência com PHDA. Sendo que é necessário ter cuidado ao avaliar as potenciais influências da PHDA, uma vez que a PHDA e a PPB também co-ocorrem e ambas são caracterizadas por impulsividade e desafios na regulação das emoções. O aumento do comportamento de risco pode ser mais caraterístico da PPB e da PHDA (e da coocorrência de PPB+PHDA), ou da coocorrência de PEA+PHDA. No autismo verificamos mais uma maior tendência para a aversão ao risco em comparação com a PPB. Contudo, uma proporção surpreendentemente elevada de pessoas com PPB tem perturbações concomitantes do uso de substâncias. Sendo que as razões para o uso de substâncias podem ser diferentes no autismo em relação à PPB (e.g., lidar com diferenças de processamento sensorial no autismo mas não na PPB). Os comportamentos de Auto-agressão/suicídio e auto-mutilação são significativamente mais elevados em pessoas autistas, mas também em pessoas com PPB. Não parece inclusive haver diferenças assinaláveis e distintivas entre as ambas as condições no que diz respeito a estes indicadores.
A instabilidade afectiva e as diferenças na regulação das emoções são muito proeminentes na PPB e observadas em muitas pessoas autistas. As diferenças na regulação das emoções no autismo (em relação à PPB) podem estar relacionadas com traços autistas, incluindo diferenças no processamento sensorial, intolerância à incerteza, desafios com mudanças nas rotinas ou novidades, e/ou ''burnout'' associado a encontros sociais e suas exigências (e.g.,
camuflagem). Na PPB, a chamada "instabilidade afectiva" pode estar mais forte e especificamente associada ao stress interpessoal.
Nos sentimentos crónicos de vazio, nas pessoas autistas, os sentimentos de "nada" são mais atribuíveis aos impactos da camuflagem e ocultação do "eu" autista para "se integrar" com os outros durante os principais períodos de desenvolvimento. Sendo que a camuflagem pode levar à incerteza em algumas pessoas autistas sobre quem são por detrás da "máscara". Na PPB os sentimentos de vazio não estão relacionados com a ocultação de características para "passar" por neurotípico e evitar ou escapar de avaliações sociais negativas e agressão social.
As questões relacionadas com uma atitude mais paranoide ou de sintomas dissociativos, no autismo, o desligamento poder ser distinguido dos sintomas dissociativos transitórios relacionados com o stress na PPB, em que o "desligamento" permite às pessoas autistas modular a sua própria sensibilidade e reatividade ao ambiente. Na PPB, os sintomas relacionados com o stress podem funcionar especificamente para moderar o stress interpessoal em vez de outras fontes de stress.
Como podemos verificar o desafio é sobejamente maior do que pensado. E ainda que as coisas nos possam parecer uma ou outra coisa, seja autismo ou borderline, é preciso avançar com a devida cautela. Mas garantidamente é certo que em ambas as condições o sofrimento psicológico é enorme. E o desafio sentido no processo terapêutico igualmente gigante, sendo sobejamente conhecido o número de abandonos da terapia por parte das pessoas borderline. Avancemos todos com maior e melhor controlo no "gás" para gerir de forma adequada a situação.
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