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As complexidades do Self

Dizes que sou autista. Porquê? Sabes ao menos quem sou? Dizes que funciono como se fosse cego a algumas coisas da minha mente. E que muitas vezes não estou consciente ao meus diferentes estados mentais. E que apenas consigo avaliar o que sinto através das minhas acções. E tu, como avalias o que sentes? E como sabes o que sentes? E que acções te levam a todo esse sentir? Dizes Eu isto, Eu aquilo. Dizes da minha auto-consciência. Não paras de dizer coisas. E até coisas de que nem eu próprio sei. Que autoridade pensas que tens para me dizer tudo isso?, dizia António (nome fictício) enquanto batia a porta do gabinete. António tem 28 anos. É trazido pelos pais para fazer uma avaliação de despiste de Perturbação do Espectro do Autismo. Ele próprio já tinha dito que não fazia questão de estar ali. Disse-o assim que entrou no gabinete. O processo de explorar o Self nas pessoas autistas é importante ser realizado a partir da percepção que o próprio tem de si mesmo e da percepção que pensa que os outros terão do seu Self. A construção do Self, a sua auto-imagem é fornecida a partir das suas próprias experiências ao longo da vida e da sua ideia acerca do seu Self no decorrer de vários momentos. Sendo que os insgiths de outros significativos e a experiência do próprio em relação a estes mesmos episódios são muito capazes de vir a ter um impacto na construção da sua auto-imagem. As vivências no grupo familiar nuclear e também mais alargado, mas também na escola e junto do grupo de pares. Bem como todo um conjunto de diferentes contextos psicológicos, nomeadamente, controlo do impulso, ajustamento da saúde mental e à vontade em situações novas, todos eles são domínios principais que reflectem a auto-imagem. Tens ideia de como foi para mim ser crianças?, perguntou-me assim que voltou a entrar novamente no gabinete e sentar-se. A maior parte das coisas que eu via os outros fazer não me fazia sentido. O porquê deles fazerem tudo aquilo ou daquela maneira. Até certo momento não fazia ideia sequer de como perguntar. Aos meus colegas na escola nem sequer me fazia sentido. Eles pareciam fazer aquilo tudo porque sim. E isso não me fazia sentido. E do que os ouvia conversar não me parecia que eles quisessem aquele tipo de perguntas. Por sua vez perguntar coisas aos adultos também se pode tornar uma experiência negativa. A minha professora na primária ficou mais assustada do que outra coisa. E ao invés de me explicar o porquê dos meus colegas brincarem daquela maneira, enviou um recado para os meus pais e mandou-os chamar. Quanto aos outros adultos lá em casa, perguntar esta mesma questão normalmente acabava em algo como - Tens idade é para brincar e não esse tipo de perguntas!, e normalmente acompanhado de um afago no cabelo, coisa que sempre detestei. Por isso, desde muito cedo que o Mundo foi sendo construído à minha maneira, compreendes?, pergunta-me com ar de quem vai continuar a explicar-me. Quando leio por ai que os autistas têm um mundo próprio, só seu, no principio ainda ficava encorajado a continuar a ler. Mas depois percebi que não valia a pena, porque quem o escrevia não parecia perceber o porquê de ser assim. Claro que eu tenho um mundo construído na minha cabeça e que foi feito por mim! Por quem haveria de ser feito? E os outros não o têm também? A não ser que a ideia de muitos serem carneiros possa querer significar precisamente isso. De que há muitas pessoas com uma mesma ideia igual do que é o mundo! Isso parece-me algo muito desapontante. Até mesmo para pessoas neurotípicas, diz António com tom de desabafo. Quando oiço falar dessa questão da auto-consciência, e do facto de sermos um objecto da nossa própria atenção. Bem como de que as pessoas autistas parecem ter a sua auto-consciência comprometida, seja porque não prestam atenção a si próprios ou porque parecem estar apenas voltados para si. Tudo isso dá-me vontade nem sei do quê?, atira António para o ar. Tal como os meus colegas neurotipicos na escola diziam - Dá-me vontade de rir! Se há coisa que eu fui estando atento foi a mim próprio e a tudo aquilo que se ia passando dentro de mim, mesmo às coisas mais pequenas e às sensações. Procurei escuta-las. Passei noites em claro a tentar perceber o que elas me diziam. Ao fim de algum tempo de não as conseguir perceber fui-me desligando de muitas delas. Não vejo que isso seja assim tão diferente daquilo que os meus pais e irmãos me foram fazendo ao longo destes anos, justificando que eu não lhes ligava. Não é isso que as pessoas fazem quando os outros não nos ligam? Desligar? Não vejo que isso seja assim tão diferente?! Mesmo quando fui levado aos não sei quantos psicólogos a que os meus pais me arrastavam, nenhum deles parecia perceber ou sequer mostrar interesse em descobrir aquilo que eu poderia sentir ou querer saber. Pareciam mais envolvidos nas suas próprias questões e dúvidas acerca do que acreditavam ou não, compreendes?, pergunta-me António. Eu não sabia muito daquilo que não sabia. E por isso não procurava as coisas. Às vezes até mesmo com a comida. Muitas vezes disseram-me para eu ir comer e só ai é que percebia que já não ia comer há mais de oito horas. E o mesmo com a água. Uma vez cheguei a ter de ir para o hospital de urgência porque desmaiei no pátio da escola. E depois de ter ido ao hospital os meus pais foram interrogados pela policia. Na altura nem sequer percebi porquê. Pensei que a policia estivesse a perguntar a eles se eu teria sido esmurrado por algum colega lá na escola. Mas depois pensei que nunca tinha falado aos meus pais sobre nenhuma daquelas situações que já tinha acontecido na casa de banho lá da escola. E como tal não poderia ser isso, pensei. Só mais tarde é que fiquei a saber que a policia pensava que os responsáveis por aquela situação tinham sido eles porque na verdade eu já não bebia água há três dias. Não que tenha percebido muito mais. Até porque nada daquilo me fazia sentido. Os meus pais não eram nada culpados. Eles não bebiam água por mim. E na verdade até me perguntavam várias vezes se tinha bebido. As pessoas pareciam muito obcecadas com o corrigir as coisas no meu comportamento. Na escola então isso foi uma constante. Por isso cresci a aprender que eu deveria estar de alguma forma partido. Todos queriam-me concertar. E eu era o desconcertado, percebes? As pessoas não querem saber quem eu sou! As pessoas, mesmos os teus colegas psicólogos a quem fui estavam interessados nos comportamentos que depois usavam para justificar os meus outros comportamentos. E eu sempre fui mais do que isso. Mas também fui desistindo de procurar-me, de saber quem sou. Mais depressa me chamavam um diagnóstico do que acertavam no meu nome. O seu filho tem autismo, diziam aos meus pais. Não era o António. Era o seu filho. Eu fui sendo isso, algo fora de mim, do outro. Afinal o que é que tu vais querer de mim?, perguntou-me António com um olhar de que a minha resposta parecia ir fazer a diferença do que aconteceria dali para a frente. Eu apetece-me ir lá fora andar um pouco. Queres vir comigo António, perguntei-lhe.


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