Aprendi a contar-me! disse António (nome fictício) de 65 anos. Curiosamente a palavra contar-me aqui tem vários sentidos e todos eles importantes e que apontam no mesmo sentido! continua. Aprendi a contar a minha pessoa também. Durante muito tempo ensinaram-me a que eu não contava ou importava. E quando importava parecia quase sempre ser por razões negativas. Mas também aprendi a contar a história da minha vida, da minha pessoa e da minha forma de viver! conclui.
Ao longo dos anos António foi apontando todos os pormenores acerca dos seus dias. E quando se diz todos os pormenores é para levar à letra. Foi inclusive este comportamento de apontar e guardar todos os registos que o levaram até ao autismo. Na altura foi levado até ao autismo e não porque queria ou sabia. Ainda era criança e foi levado pelos pais. Andava sempre com um bloco de notas e uma caneta. Apesar da insistência para usar um lápis, António referia sempre que não, até porque não se enganava nos registos como dizia sempre a quem lhe perguntava se não queria antes usar um lápis.
Na primeira vez que foi ao médico disseram aos pais que seria um problema mais relacionado com uma Perturbação Obsessivo-Compulsiva. Além deste registo mais obcecado com o apontar/registar de todos os acontecimentos, António fazia questão de muitas outras coisas na sua vida serem de uma determinada forma. E sim, principalmente em criança fica mais desregulado quando as coisas não ocorriam dessa mesma forma.
Este aspecto de contarmos a nossa própria história também remete para aspectos que no espectro do autismo vão aparecendo com alguns compromissos. Estamos a falar da memória auto-biográfica, mais especificamente. E mesmo até naquelas pessoas autistas que têm uma maior e melhor capacidade de memorizar informação, até nestes pode acontecer que a memória auto-biográfica aparece comprometida. Seja porque a sua capacidade de registar informação se prende principal ou exclusivamente com coisas do seus interesse. Mas também porque pode não valorizar certos acontecimentos como importantes tendo em conta a forma como os processam. E como não são processados com devida intenção acabam por não ser guardados na memória, neste caso auto-biográfica. E isso acaba por transparecer na forma como quando tentam contar alguma parte da sua história e a informação aparece trazida de uma forma menos coerente pois faltam determinados pontos de ligação entre eles.
Em algumas pessoas a questão pode ir ao ponto d relevância de contar a nossa história. Porquê? Qual a necessidade de sabermos contar a nossa história? Qual a funcionalidade? O que é que isso acrescenta? São todas questões pertinentes, mas que parecem em algumas pessoas autistas não serem capazes de ser respondidas para lá do facto de não fazer sentido e como tal não tem importância. Mas a nossa história, assim como a de um pais, é fundamental para a construção da própria identidade. E curiosamente ouvimos muitas pessoas autistas perguntarem e perguntarem-se quem são elas!
E podermos pensar que contar a sua própria história enquanto pessoa autista não se centra única e exclusivamente nas suas características e no ter sido diagnosticada, ou de como foi quando tentou falar do seu diagnóstico a outras pessoas, etc. Contar a sua história enquanto pessoa autista e narrar aquilo que foi o conjunto de vivências, experiências, acontecimentos, desde os mais comezinhos e quotidianos aos mais complexos e subjectivos. E aqui chamo a atenção para a importância dos outros significativos em volta da pessoa autista. É fundamental que estas pessoas, sejam pais ou outros familiares, educadores e professores, colegas, profissionais de saúde, etc., ajudem a pessoa a aprender a contar a sua própria história. Isto é, muito frequentemente quando ouvimos uma pessoa autista a contar aspectos da sua vida, esta história ou capitulo da história, parece estar carregado de eventos negativos, traumáticos até. E não é que não tenham havido acontecimentos positivos, porque os houve. Mas muitas vezes estes acontecimentos negativos parecem sobrepor-se aos positivos. Ou então, parece que a pessoa autista não terá processado estes aspectos positivos como importantes e como tal não passaram a fazer parte da história da sua vida.
Todos nós vamos aprendendo a fazer as coisas, e neste caso também a contar histórias. E que alguns de nós se venham a tornar verdadeiros contadores de histórias. Muitos apesar de não o serem, tornam-se claramente mais proficientes nesta tarefa. Mas tiveram necessariamente a ajuda neste processo inicial de aprendizagem a construir momentos significativos e parte integrante da sua história. Mas também a saber olhar para vários acontecimentos normativos e quotidianos e a selecioná-los com importantes para fazerem parte da história da sua vida. Quando as pessoas à nossa volta fazem ressaltar tão frequentemente as nossas dificuldades, problemas, etc., na verdade a pessoa não tem vontade de contar a sua história com aquela informação. Ou então se a conta é uma história toda ela negativa e sombria, o que porventura caracteriza muito daquilo que encontramos enquanto sintomatologia depressiva nas pessoas autistas. Mas também me parece importante pensar que contar a história da sua pessoa enquanto pessoa autista não tem necessariamente de passar por ressaltar as memórias enquanto pessoa que alcançou determinado conjunto de feitos excepcionais, ainda que estes possam ter acontecido. Até porque algumas pessoas autistas dizem que não têm contado a sua história porque não têm nada de excepcional e como tal sentem que não vale a pena contar a sua história. A ideia é que a história da pessoa, seja neste caso uma pessoa autista, possa ser a experiência, a vivência de todos aqueles dias e noites naquilo que há de mais genuíno nestes acontecimentos.
Mas contar a nossa própria história não é apenas fazer um descritivo das nossas memórias auto-biográficas, como se estivéssemos a fazer um dupping de fotos numa qualquer rede social. Contar a nossa história também é ressignificar aquilo que vivemos. E podemos até mesmo contar ou recontar a história da nossa vida de uma forma algo diferente à medida que vamos avançando no tempo e também na história. Ainda que muitas vezes várias pessoas autistas fazem este reviver de experiências da sua vida, nomeadamente negativas e traumáticas e ficam de uma forma mais ruminativa a pensar sobre elas e a (re)vivenciar e (re)experienciar estes traumas de forma repetida. A ideia é de poder ajudar as pessoas a irem à sua história de vida e poderem repensar sobre esta e sobre alguns acontecimentos de uma forma mais compassiva e não tão autocrítica, ainda que esta ultima característica esteja demasiadamente presente nas pessoas autistas.
Contar a nossa história é contar a nossa existência! Contar a nossa história é sermos agentes activos na construção e reconstrução da nossa própria vida! Contarmos a nossa própria história é passarmos a ser pertencente de uma cultura, identidade, mas também de um valor educacional e de uma herança geracional.
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