Grande parte daquilo que eu sei sobre as relações aprendi com muitas das personagens Anime que sigo, diz Gonçalo (nome fictício), certo das suas palavras. O tempo da minha infância e adolescência foram passadas em frente a um ecrã, continua. E as minhas relações interpessoais são muito próximas de inexistentes, compreende!?, disse. Mas isso não significa que eu não me importe com a situação. Isso não significa que não tenha curiosidade nas relações e no porquê de certas coisas acontecerem, acrescenta. Além disso, sempre fui tendo dificuldade em compreender as minhas próprias emoções. Eu sabia que estava a acontecer alguma coisa dentro de mim. Eu sentia as coisas, mas não lhes sabia dar um nome. E foi com aquelas personagens que eu passei a dar um nome às minhas emoções, refere. Compreende agora por que é que eu tenho aquilo que chamam de obsessão com Anime?, pergunta-me.
Gonçalo tem 26 anos. Tem um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo desde os 8 anos. Desde de sempre que tem este interesse intenso com Anime, e a cultura pop Japonesa de uma maneira geral. É quase impensável não desenvolvermos esta aproximação com o Japão, compreende? É como gostar de blues e não ter apreço pela cultura Afro-Americana e todas aquelas cidades onde os blues imergiram, compreende?, pergunta-me. Os blues é um dos outros interesses do Gonçalo, onde acumula não só um interesse marcado, mas também um conhecimento enciclopédico sobre o tema.
Gonçalo está entre outros tantos milhões de fãs de Anime e Manga por esse mundo fora, centrados principalmente nos continentes Asiático e Americano. E dentro destes milhões contam-se um número significativo de pessoas autistas que desenvolvem uma aproximação igualmente intensa como a do Gonçalo junto deste mundo. Mas porquê? Os pais perguntam-se muito sobre isso. O que é que ele vê naqueles desenhos animados, não percebo!?, desabafam muitos pais. Nada que tantos outros pais de outras gerações não se tenham questionado em relação a outros gostos dos filhos, como por exemplo o Rock & Roll. Aquilo é só gritaria!!, dizem alguns. Da mesma forma que muitos pais que tentaram ver algum excerto de um episódio Anime. E desistiram ao fim de algum tempo por não perceber ou não lhes fazer sentido muito do que estava a acontecer do ponto de vista da própria coerência.
Mas o Anime e o Manga também pode ajudar os adolescentes autistas a reconhecer e discriminar entre rostos. No Manga moderna, os rostos são geralmente desenhados com olhos enormes, queixos pontiagudos pequenos, e penteados extremos. A sua representação segue mais uma linha icónica em vez de realista. Sendo que os rostos das personagens são o aspecto mais saliente. Designado de linguagem visual Japonês, ou seja, um conjunto de convenções estéticas que caracteriza a banda desenhada japonesa e animação. Por exemplo, os heróis de Shonen (manga para rapazes) são muito semelhantes na aparência através das séries, pelo menos em termos das suas características faciais estereotipadas, sendo que se pode ter o cabelo preto com um formato espinhoso, como o Komuro da Hight School of the Dead, enquanto outro tem franjas azuis claras que caem sobre os olhos, como Kuroko do Kuroko’s Basketball. Ou por exemplo, uma gota de suor na testa de um personagem, facto que poderia desconcertar um leitor ocidental não sensibilizado para a cultura por Japonesa. Representa preocupação, tensão, surpresa ou raiva, ou um nariz ensanguentado simboliza excitação sexual. Leitores experientes de Manga reconhecem e interpretam estes símbolos sem pensar, assim como os leitores ocidentais sabem que uma nuvem escura que paira sobre a cabeça do Charlie Brown significa que ele é, como sempre, um pouco deprimido. Enquanto os rostos na banda desenhada ocidental têm uma variedade de formas. Um rosto de Manga parece sempre um rosto de Manga, tornando-os fáceis de reconhecer para os leitores autistas. Ao mesmo tempo, cada um tem uma característica simples que significa, inequivocamente, a identidade do personagem, ajudando os leitores autistas a desenhar distinções entre rostos.
No nível mais básico, o Manga pode ser apelativo para os leitores autistas simplesmente porque é um meio rico em termos de imagem, e muitas pessoas autistas são melhores a processar imagens do que as palavras. A quantidade de passagens sem palavras em qualquer volume de manga pode ser impressionante para um leitor ocidental. Para ler Manga é ler imagens — o ritmo é determinada pela sequência de imagens. Na maioria dos casos, isto significa que a imagem por si só transmite informação narrativa.
Além de que o Manga apresenta muitas vezes imagens altamente detalhadas, ilustrações fotorealistas de edifícios e paisagens, usados como fundos ou de forma autónoma, como cenário de cena apresentada.
Um outro aspecto que vai sendo referido como importante é o ultrapassar do limite do absurdo. Não se trata apenas de ficção. Até porque alguma da ficção já foi transposta para a própria realidade em algumas situações. É algo que está para lá disso, como se fosse algo surreal.
E na verdade, o próprio Manga e Anime tem procurado integrar o autismo nos seus trabalhos ao longo destes anos. Sendo que este estilo já data de 1920. E muitos deles e das suas personagens têm ajudado muitos dos leitores a se conseguir identificar com a personagem e com o próprio diagnóstico. Alguns desses exemplos são, With the Light: Raising an Autistic Child por Keiko Tobe, Akira de Katsuhiro Otomo, The Pet Girl of Sakurasou ou Boys Over Flowers, entre outros.
Frequentemente os fãs de Manga e Anime sente-se transportados para um outro Mundo, e que no caso das pessoas autistas não deixa de ser curioso, o facto de muito se sentirem eles próprios na sua vida preso num mundo à parte.
E quando se observa as dificuldades de alguns deles em terem hábitos de leitura, é bastante positivo perceber que quando levamos a que as pessoas procurem aquilo com que melhor se identificam, tudo parece ser mais fácil. E o mesmo para a própria identificação e comunicação da emoções, assim como da compreensão das relações humanas. Além do mais poder perceber que há toda uma comunidade, virtual e presencial, em torno da cultura pop Japonesa e que é possível pertencer a uma tribo. Sentimos que o nosso mundo estranho afinal de contas é povoado por mais pessoas. E que afinal nem o mundo ou as pessoas são estranhas. São apenas diferentes.
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