Amigos, poucos mas bons! Acredito que muitos já disseram esta mesma frase. Eu já a ouvi muitas vezes, dita por muitos dos meus clientes autistas. Mas antes que fiquem já a pensar que a frase em questão significa que as pessoas autistas não querem ter ou fazer amigos, digo-vos que estão enganados.
Ele não se quer dar com ninguém, disse o pai. Na minha altura já tinha tido um namorado, diz a mãe. Não sabemos o que é que ele pensa que quer fazer?, disseram os dois. Eu já lhes disse que não vou fazer amigos apenas porque eles dizem para eu fazer, diz Carlos (nome fictício). Este breve excerto da troca de algumas ideias entre pais e filho sobre as amizades, ilustra bem algumas das situações que ocorrem com frequência no Espectro do Autismo.
A amizade satisfaz várias necessidades humanas, incluindo intimidade, apoio e companheirismo. Estas necessidades interpessoais emergem numa ordem de desenvolvimento específica, com o companheirismo a surgir logo no segundo ano de vida, enquanto a intimidade e o apoio emocional se tornam uma motivação central para a amizade durante a pré-adolescência e o início da adolescência. Desde a adolescência até à idade adulta, os amigos continuam a servir como uma fonte vital de companheirismo, intimidade e apoio. O desenvolvimento da compreensão da amizade é paralelo ao surgimento destas várias funções de amizade. As crianças entendem um amigo como um parceiro de jogo fiável, que é avaliado globalmente como agradável.
As referências à intimidade, bem como à lealdade e ao compromisso, tornam-se mais prevalecentes a partir dos 11-14 anos de idade. A partir desse período, o conceito de amizade permanece relativamente estável ao longo da vida, tendo a intimidade, o apoio e o companheirismo como seus principais componentes. Para além das mudanças de desenvolvimento, existem diferenças consistentes nas funções que a amizade serve para os homens e as mulheres. Os rapazes adolescentes concentram-se mais no companheirismo e na competição, enquanto as raparigas sublinham o papel da intimidade nas suas concepções de amizade. Da mesma forma, os homens adultos concentram-se mais frequentemente em actividades agradáveis em conjunto com amigos, enquanto as mulheres se concentram em partilhar os seus sentimentos e ideias. Apesar desta descrição dicotómica, é importante dizer que isto não se passa desta forma estanque e há uma maior variabilidade.
As crianças progridem de uma perspectiva egocêntrica (i.e., os amigos satisfazem as suas necessidades) para um reconhecimento de que as funções de amizade devem ser recíprocas. Tal como validado na investigação transcultural, as crianças atingem este entendimento entre os 9 e os 12 anos de idade. No entanto, só na adolescência é que adquirem um sentido de continuidade de experiências partilhadas com um amigo que transcende as exigências e conflitos situacionais. Conceitos como lealdade e confiança tornam-se centrais para a compreensão da amizade por parte dos adolescentes - uma crença de que um amigo deve ser incondicionalmente sensível às suas necessidades. Em resumo, todas estas mudanças constroem a crescente complexidade da compreensão da amizade, incluindo várias funções e características deste tipo de relacionamento.
Uma compreensão alterada das relações, incluindo a amizade, é um dos traços marcantes do autismo. As dificuldades em desenvolver, manter, e compreender as relações sociais, incluindo a amizade, são uma das características marcantes da Perturbação do Espectro do Autismo. De facto, a investigação tem demonstrado que as pessoas autistas têm poucos amigos, o que está relacionado com uma maior nível de solidão, menor satisfação de vida e menor auto-valorização neste grupo.
Apesar de verificarmos algumas diferenças na formas como as pessoas autistas e não autistas olham para a amizade, os estudos têm demonstrado que essa diferença não é significativa. E que se encontram muitas questões similares entre ambos os grupos. Ainda que ao nível da intimidade nas relações de amizade possa haver alguma diferença mais evidente. Teoricamente, as diferenças entre pessoas autistas e não autistas na compreensão da amizade podem decorrer de mecanismos motivacionais ou cognitivos, que devem manifestar-se de forma diferente nos seus conceitos de amizade. A literatura existente sobre a motivação da amizade sugere que adolescentes e adultos autistas parecem ser mais orientados para actividades conjuntas em torno dos seus interesses do que partilhar sentimentos e apoio emocional. Outros estudos sugerem que as amizades mantidas por adolescentes autistas são muitas vezes centradas em torno de interesses compartilhados e actividades estruturadas, como jogar jogos de computador ou andar de bicicleta. No entanto, chama-se a atenção para o facto de que muitos destes estudos são conduzidos com rapazes e não com raparigas. E é sabido que as diferenças observadas na forma de olhar a amizade vista por rapazes e raparigas é diferente nos não autistas, mas também nos autistas. E como tal, é importante poder perceber como é que essa questão ocorre nas raparigas autistas.
Deixem-me falar da fotografia usada no texto. A foto foi retirada da internet e como tal não sei sobre a verdadeira história dos quatro rapazes presentes. Mas todos nós tivemos ou temos uma fotografia semelhante. Ou então uma experiência parecida e em última análise uma fantasia do que poderia ou gostaríamos de ter acontecido. Começando da esquerda para a direita, temos o Afonso (nome fictício). Mr. Ace, para os amigos. Apesar de ser o mais inteligente e promissor de todos eles, na entrada para a universidade acabou por demonstrar uma maior fragilidade devido ao seu perfeccionismo. A seguir vem o Eduardo (nome fictício), os músculos e o núcleo do grupo. Sempre que havia alguma quezília na escola ou no bairro, ele estava sempre lá. E o Carlos (nome fictício), sabe bem que isso é verdade. Por último, está o Silvestre (nome fictício). Ou Mr. Style como fazia questão que o chamassem, apesar de não se apresentar assim tão diferente de qualquer um deles. A diferença estava na sua forma única e genuína de ser, e talvez os óculos. Conheceram-se todos no Jardim de Infância, e desde então nunca mais deixaram de se fazer acompanhar. Mesmo quando Eduardo ficou retido no 5º ano e todos eles avançaram para o 6º. Nunca deixaram de contar uns com os outros. Carlos ficou um pouco mais ansioso. Sempre ficara, mesmo no Jardim de Infância. Se as brincadeiras não fossem de determinada forma as coisas ficavam mais difíceis de tolerar. Mas Eduardo arranjava sempre forma de resolver as coisas, já naquela altura precoce. Quando o Carlos começou a ir às consultas de psicologia no final do 4º ano, os seus amigos não estranharam. Sabiam que Carlos era um pouco mais ansioso, mas não deixava de ser o seu amigo. Não era apenas a ansiedade que era difícil para o Carlos. O próprio Mr. Styles era difícil para o Carlos. Silvestre era tudo menos uma pessoa monótona. E esta era a forma mais simpática de colocar as coisas. Carlos perdeu a conta ao número de sustos que teve sempre que o Silvestre aparecia vindo do nada ou fazia por querer mudar as coisas à última da hora. Num dia Carlos disse aos amigos que queria falar com eles. Nunca tinha acontecido tal coisas. Nem o Silvestre se atreveu a fazer piadas. Tenho autismo, disse Carlos! Tens o quê?, perguntou de imediato Silvestre. Nem te atrevas a fazer piadas Silvestre, retorquiu Eduardo. Deixem-no falar, disse Afonso. Carlos tinha ouvido tudo aquilo que lhe explicaram na consulta e passou a informação toda na integra, tal como era hábito seu. Que o diga Silvestre, que lhe pedia frequentemente os cadernos para passar a limpo. Não interessa o que és, disse Eduardo. Já eras nosso amigo antes, e vais continuar a sê-lo. Nunca mais se falou naquilo.
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