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Admirável mundo novo

Quando Aldous Huxley publicou em 1932 - Admirável mundo novo, foram muitos aqueles que no mundo literário não perceberam o alcance daquela obra. Escreveu mais tarde, em 1958, Regresso ao admirável mundo novo. O livro está replecto de leituras antecipadas do que haveria de ser concretizado na nossa actualidade em termos de tecnologia reprodutiva, manipulação psicológica ou condicionamento clássico. A personagem do livro, Bernard Marx retrata uma pessoa insatisfeita com o mundo onde vive, em parte porque se sente diferente fisicamente dos restantes. Na Perturbação do Espectro do Autismo também existe muitas sensações destas - insatisfação com o mundo onde se vive. Mas também há muitas outras situações que se pensa ser uma realidade e que nem sempre o é. Depende da forma como se procura compreender o fenómeno.

Na Perturbação do Espectro do Autismo (PEA) as pessoas apresentam compromissos na interacção e comunicação social, certo? Até os critérios de diagnóstico (DSM e ICD) o referem, correcto? Para além disso os estudos científicos ao longo dos anos têm demonstrado sem margem de dúvida que essa afirmação é verdadeira. Então porquê ter dúvidas? As pessoas com Perturbação do Espectro do Autismo têm um deficit persistente na interacção e comunicação social, ponto final. E se a ciência o demonstra, então é porque deve ser verdade! E isso significa que as pessoas com PEA não querem ou desejam ter interacções sociais? Ou isso quer dizer que as pessoas com PEA têm vivências de situações mais graves que outras pessoas sem PEA?


Muitas vezes penso que confundimos a ciência como sendo A Verdade, no sentido de uma verdade absolutista e que não admite mais nenhuma possibilidade. A ciência avança, não apenas nas metodologias usadas mas também na compreensão que faz dos fenómenos. Por isso é que uma verdade apurada em determinado período de tempo através de inúmeras investigações pode vir, e normalmente ocorre, sofrer alterações nos resultados obtidos e/ou na compreensão dos fenómenos ao longo do tempo.

O autismo é caracterizado em parte pelos desafios da pessoa em comunicar e interagir socialmente com os outros. Essas dificuldades têm sido tipicamente estudadas isoladamente, concentrando-se nas diferenças cognitivas e comportamentais daqueles com PEA, mas pouco trabalho foi feito sobre como as trocas de pessoas autistas se desenrolam no mundo real. Esta questão não é exclusiva do autismo. Ou seja, a necessidade de que os estudos cientificos possam ter uma maior validade ecológica. Ou seja, que o fenómeno e a forma como é estudado possa ter uma maior aproximação à realidade, ao contexto e à forma como ocorre. E muitas vezes os estudos são realizados em contexto laboratorial, em que as situações experimentais criadas carecem de aproximação à realidade, e o conjunto de variáveis a estudar nem sempre está no controlo do investigador, etc.


O estudo da interacção social no autismo tem muito frequentemente sido estudada pela via da presença ou não das competências sociais. Seja na pessoa autista mas também no outro que não tem autismo e que participa na experiência para testar a competência de interacção social do primeiro - pessoa com PEA. Mas esta situação experimental tem sido pensada como algo que pode não fazer sentido. E muito menos suficiente para dos seus resultados extrair que as pessoas com PEA possuem menos competências sociais. Isto porque é importante poder compreender a compatibilidade existente entre as pessoas. Ou seja, se alguém sentir menos compatibilidade com a pessoa com quem está a interagir, esse facto irá trazer compromisso para a situação social em si e para a aferição das competências sociais da pessoa. Como resultado podemos estar a deduzir que a pessoa com PEA tem menos competências sociais quando uma percentagem desse resultado é também explicado pelo facto desta sentir menos compatibilidade com a pessoa com quem tinha de interagir.


Esta questão designada como "problema da empatia dupla", prevê que duas pessoas que são neurologicamente diferentes e têm modos distintos de comunicação e compreensão podem ter problemas para se conectar, como geralmente ocorre nas interações entre autistas adultos e não-autistas. Não é apenas que os adultos autistas possam ter dificuldade para inferir os pensamentos e motivações de adultos em desenvolvimento típico. O inverso também é verdadeiro. Pessoas não autistas lutam para inferir o que as pessoas autistas estão a pensar. E de uma forma transversal, muitos de nós no nosso quotidiano lutamos com mais ou menos dificuldade para inferir o que os outros com quem interagimos poderão estar a penar. Não é uma dificuldade exclusiva apenas de uns.


Não é por acaso que tenho um determinado número de clientes com Perturbação do Espectro do Autismo que me dizem que não tem problemas na interacção social, mas sim em algumas situações, ou até mesmo com determinadas pessoas. Até para espanto dos próprios e principalmente de outros, pais, professores ou colegas, há várias situações em que eles conseguem desempenhar de forma capaz. Por exemplo numa situação com grande visibilidade social, como em comunicações para o público. E a explicação fornecida por eles é muito simples - é uma questão profissional e o meu foco está totalmente direccionado para a tarefa em si e não para a restante situação.


Nos adultos com Perturbação do Espectro do Autismo é comum encontrarmos situações em que há necessidade de estabelecer um diálogo breve em que há necessidade das pessoas se conhecerem sendo que nunca se conheceram antes. Se a outra pessoa com que a pessoa adulta com PEA está a interagir lhe for pedido para dar um feedback acerca da interacção é possível ficarmos a saber que a pessoa com PEA não foi tida como sendo menos inteligente, de confiança ou até mesmo aprazível quando comparada com uma pessoa sem autismo em condições iguais. E as interacções entre adultos ambos com PEA quando avaliada é tida como tendo sido mais favorável do que quando um teve um contacto com alguém sem autismo.


Precisamos de caminhar, seja a nível clínico, cientifico ou relacional com uma atitude de respeito pela neurodiversidade. E aqui não estou somente a falar de Perturbações do Neurodesenvolvimento mas sim todas as diferentes formas existentes de processamento da informação e das vivências humanas. Seja porque as nossas características se enquadram em determinados critérios de diagnóstico de um manual de classificação, ou porque as mesmas se traduzem num determinado perfil de funcionamento ou personalidade. O certo é que todos nós, independentemente de apresentarmos formas singulares de nos podermos relacionar desejamos muito o mesmo - sermos.

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