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A psicose no autismo vs. o autismo na psicose

Não sei se aqueles comportamentos poderão apenas ser explicados pelo autismo! dizia o psiquiatra. Sim, concordo. Algumas das carcaterísticas comportamentais presentes na infância pertenciam a um quadro de autismo. Mas a evolução da situação clinica parece ser mais condizente com uma psicose! referia o psicólogo.


Este breve diálogo aqui simulado transcreve muito da realidade que vamos observando ao longo do ciclo de vida da pessoa autista. O facto de haver um número significativo de outras perturbações psiquiátricas associadas. Mas também a intersecção de algumas destas características presentes em diferentes diagnósticos. São todas situações que nos levam a colocar em hipótese poder não se tratar de uma situação de autismo.


Há fortes evidências para a existência de uma alta comorbilidade entre o autismo e a psicose com percentagens que chegam aos 35%. Sendo que nestas situações são várias as implicações significativas para o tratamento e prognóstico destes pessoas. No entanto, a identificação da psicose em comorbildiade em pessoas autistas representa um desafio complexo do ponto de vista psicopatológico. Em particular em pessoas com maiores défices na comunicação verbal.

Intercetar o aparecimento de uma episódio psicótico no autismo pode ser muito difícil. Ambas as condições ocorrem de facto ao longo de um continuum fenotípico de gravidade clínica e, em muitos casos, os sintomas psicóticos estão presentes numa forma atenuada.


Esta proximidade entre a psicose e o autismo não é nova. Se historicamente a esquizofrenia e o autismo foram considerados estreitamente relacionados. Posteriormente, através de estudos epidemiológicos, estas duas condições foram reconsideradas como duas entidades distintas, cada uma com as suas próprias características, curso clínico e início típico. No entanto, há um número crescente de estudos que focam a sua atenção na ligação entre a esquizofrenia e as perturbações do espectro do autismo, encontrando sobreposições significativas em estudos genéticos, dados de neuroimagem, sinais clínicos e características cognitivas. Fornecendo fortes evidências para a existência de altas taxas de comorbilidade entre autismo e psicose.


De acordo com a literatura, até 35% das pessoas autistas podem apresentar sintomas psicóticos e, da mesma forma, características autistas foram relatados em pessas com esquizofrenia numa percentagem que varia entre 3,6 e 60%.


Precisamente por causa desta elevada taxa de comorbilidade entre o autismo e a esquizofrenia, vários clínicos colocam a hipótese da existência de uma vulnerabilidade psicótica significativa em pessoas com uma perturbação do neurodesenvolvimento. Em particular, as dificuldades observadas no processamento de informação são comuns no autismo e podem favorecer o risco de uma transição para a psicose. A expressão dos sintomas nucleares no autismo pode variar significativamente entre as pessoas autistas e pode ser influenciada pela idade de início desta condição. Além disso, os sintomas, sejam psicóticos ou autistas e que apresentam maior atenuação, podem dificultar ainda mais o reconhecimento das duas perturbações comórbidas.


Os delírios são definidas como "crenças fixas que não são passíveis de mudar à luz de provas contraditórias". De acordo com Jaspers, existem três critérios cruciais para definir os delírios: (1) certeza subjetiva, incomparável a outras convicções; (2) impermeavelmente contra-argumentos; (3) implausibilidade do conteúdo. Embora os delírios sejam comumente considerada uma das principais características da perturbação do Espectro da Esquizofrenia, as crenças delirantes podem ser reconhecidas em diferentes condições psiquiátricas: perturbação bipolar, perturbação depressiva major com características psicóticas, perturbações neurológicas e médicos como demência, delírio ou intoxicação por drogas, e por fim, na Perturbação do Espectro do Autismo.


A presença de crenças delirantes, de suspeição e ideia paranóide em crianças autistas é relatada desde as primeiras descrições do autismo e observadas por diferentes clínicos como estados semelhantes à esquizofrenia, condições limítrofes, ou perturbações graves do desenvolvimento do ego. As crenças delirantes mais comuns nas pessoas autistas são expansivas, delírios persecutórios, de referência ou delírios de inserção e roubo de pensamento e "ideia incomum".


Em alguns casos, não é fácil distinguir entre “fantasias infantis” e crenças delirantes. Sendo que uma questão nuclear e de se as crianças autistas são capazes de distinguir entre as suas percepções subjetivas e a realidade. Se assumirmos que a condição autista implica uma dificuldade intrínseca na distinção entre fantasia e realidade, o reconhecimento de um delírio nestas pessoas torna-se uma tarefa psicopatológica muito complexa.


A maioria dos relatos de crianças autistas que desenvolvem ideias delirantes é caracterizada por pelo menos duas características: um nível cognitivo médio e uma capacidade comunicativa adequada. Estes são necessários para que as crianças expressem os seus próprios pensamentos e para o clínico avaliar os delírios infantis. Infelizmente, um número significativo das crianças autistas apresenta um déficit importante de comunicação, incluindo mutismo e deficit cognitivo. Em vários casos, é relatado o quanto pode ser difícil para essas pessoas descreverem os seus delírios e para os clínicos identificá-los e classificá-los. Por esse motivo, alguns clínicos levantaram a hipótese de investigar a presença de ideias delirantes também por meio de desenhos.


As pessoas autistas têm dificuldades em interpretar pistas sociais subtis, provavelmente por causa de um déficit da Teoria da Mente. Sendo que ambas as pessoas com Perturbação do Espectro do Autismo e Perturbação do Espectro da Esquizofrenia apresentam dificuldades a este nível. As crianças autistas podem chegar a nunca adquirir competências na teoria da mente, enquanto que as pessoas com esquizofrenia podem ter uma capacidade intacta de mentalizar. Outros clínicos sugerem que, mesmo que as dificuldades na mentalização sejam claras tanto no autismo quanto na esquizofrenia de início na infância, existem diferenças significativas entre os dois grupos clínicos. Em particular, tem sido observado que pessoas autistas de alto funcionamento são mais prejudicados na teoria da mente quando realizam o teste verbal faux-pas, do que as pessoas com esquizofrenia.


Um outro aspecto a ser tido em conta nesta intersecção entre a esquizofrenia e o autismo são as alucinações. A alucinação representa "a convicção íntima de realmente perceber uma sensação para a qual não há nenhum objeto externo" enquanto os sintomas negativos são representados por afectos embotados, alogia, associalidade, anedonia e avolição.


As alucinações, em particular as auditivas, têm sido intimamente ligadas à esquizofrenia e constituem um dos cinco sintomas-chave do critério A para o diagnóstico de esquizofrenia de acordo com o DSM-5. As alucinações também foram descritas em outras condições psiquiátricas e médicas. As pessoas autistas também experienciam frequentemente. E descrevem e exibem padrões incomuns de sensação e que de acordo com o DSM 5, estas questões sensoriais são um sintoma central para o diagnóstico de autismo. No entanto, na prática clínica, é difícil discernir entre problemas sensoriais presentes em pessoas autistas e alucinações, com implicações significativas para o tratamento, prognóstico e acesso aos serviços.


As pessoas autistas frequentemente sofrem de “experiências perceptivas anómalas” em comparação com pessoas neurotipicas. Por exemplo, a percepção de sons sem uma fonte visível são comumente relatadas, como ouvir um comboio 5 a 10 minutos antes de ele passar ou ouvir sons ao redor. Estas experiências referem-se a experiências perceptivas e alucinatórias e são semelhantes aos fenómenos clínicos comumente associados à psicose (vozes, distorções perceptivas, experiências “fora do corpo”). Assim como os pacientes psicóticos, os pessoas autistas descrevem essas experiências como intrusivas e causadoras de stress.


Uma outra questão é que descrever o processamento sensorial adequado pode ser difícil para as pessoas autistas, principalmente por causa de seus déficits na comunicação verbal e seu comprometimento de linguagem. Como a leitura concreta das questões pode estar presente, investigar alucinações numa pessoa autista pode resultar em respostas confusas. Por exemplo, “Você ouve vozes quando não há ninguém?” “Sim (no rádio)”. Além disso, as pessoas podem descrever as suas queixas somáticas de maneiras inusitadas. Por exemplo, uma pessoa autista que sofria de dor de cabeça descreveu a sua condição dizendo que a sua cabeça estava a sangrar.


Os sintomas diagnosticados erroneamente como psicóticos, quando considerados no contexto de uma perturbação do neurodesenvolvimento, podem ser mais bem compreendidos como parte dele do que como sinal de uma psicose concomitante. Dado o déficit de linguagem e comunicação, reconhecimento emocional, reciprocidade social, interesse estereotipado, teoria da mente e coerência central, alguns clínicos afirmam que a confiabilidade neste grupo clínico pode ser um problema sério em distinguir alucinações verdadeiras de imaginação, memórias, ilusões e pseudo-alucinações.


As crianças autistas quando relatam as alucinações verbais, às vezes têm dificuldades em reconhecer se ouvem a sua própria voz ou a de outra pessoa e muitas vezes não são capazes de relatar as palavras ou frases específicas que as vozes podem estar a dizer. Por exemplo, uma criança descreveu alucinações auditivas que às vezes lhe diziam para se matar ou matar outras pessoas e que tendem a piorar quando se sentia sob stress. Uma avaliação mais aprofundada sugeriu que ele não era verdadeiramente psicótica, mas estava a ter pseudo-alucinações. Com a intervenção terapêutica (não farmacológica), passou a reconhecer que essas vozes eram da sua imaginação e passou a considerá-las menos assustadoras até desaparecerem.


Por último, é importante abordar a questão dos sintomas negativos. Estes são representados por um afecto embotado, alogia, associalidade, anedonia e avolição. Ao contrário das alucinações e delírios, que são sintomas transdiagnósticos, os sintomas negativos representam uma característica central da psicose e podem estar presentes apenas na esquizofrenia ou na perturbação esquizoafetiva. Esta é a razão pela qual a história de sintomas negativos está fortemente relacionada à história da Esquizofrenia.

Portanto, diferenciar os sintomas negativos da esquizofrenia dos sintomas autistas representa uma tarefa crucial, mas complicada, mesmo para profissionais de saúde especialistas. Por exemplo, tanto a interação social quanto os déficits de comunicação social são frequentes em pacientes com esquizofrenia como resultado de seus sintomas negativos. Ao mesmo tempo, estes são considerados os principais sintomas clínicos no autismo. Além disso, a falta de reciprocidade emocional no autismo pode ser confundida com o afecto “embotado” na esquizofrenia. Por um lado, no que diz respeito à reciprocidade emocional, é um critério diagnóstico para o autismo. No entanto, o DSM 5 não explica precisamente o que significa reciprocidade, mas apenas fornece descrições anedóticas como “não participar ativamente de brincadeiras ou jogos sociais simples”, “preferir atividades solitárias” ou “envolver outras pessoas em atividades meramente mecânicas. Ou então, o afecto embotado é definido como uma “diminuição na expressão da emoção e reatividade a eventos observados durante a expressão espontânea ou eliciada da emoção (expressão facial e vocal e gestos expressivos)” e manifesta-se como um empobrecimento característico da expressão emocional, reatividade e sentimento.


Como tal, para melhor diferenciar esses dois conceitos, pode-se levantar a hipótese de que em pessoas autistas, estas podem apresentar um maior pobreza na reciprocidade (que pode ser semelhante à “diminuição na expressão da emoção e reatividade” do embotamento afectivo), mas também uma inadequação de reciprocidade (o que é mais típico do autismo). Além disso, também nos comportamentos restritos e repetitivos no autismo podem ser facilmente mal interpretados como um sintoma de esquizofrenia.

O curso clínico representa um elemento chave para o diagnóstico diferencial entre autismo e psicose. O curso natural da esquizofrenia é extremamente heterogéneo e geralmente considerado imprevisível. O início da esquizofrenia geralmente ocorre entre o final da adolescência e meados dos 30 anos de idade e segue um estado prodrómico no qual já ocorreu comprometimento social, interesses atípicos e crenças incomuns. O início antes da adolescência é raro. Por outro lado, o autismo é uma condição de início precoce (12-24 meses de idade) caracterizada por déficits persistentes na comunicação social, bem como padrões de comportamento restritos e repetitivos.

É fundamental pensarmos que no autismo, assim como em outras condições, as coisas não são estanques e únicas na sua expressão.



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