Diziam-me que nunca tinham visto uma criança que gostasse assim tanto de poesia! diz Cláudia (nome fictício), de 43 anos. Ainda hoje tenho aquela frase escrita num papel que de tão vincado que foi inicialmente e com o passar dos anos acabou por se rasgar nos vincos, assim como as pessoas dizem que por vezes se sentem a rebentar pelas costuras. Mas conservei aquele papel, assim como outros. Nunca tinha visto uma criança que gostasse assim tanto de poesia! está lá escrito. Tanto que naquela frase não compreendia. E ainda hoje confesso que me faz questionar sobre muitas coisas. E por isso escrevo. Escrevo o que não compreendo. E por isso escrevo muito. Tornei-me escritora por necessidade, por incompreensão. É isso que respondeo sempre que me fazem entrevistas. Nunca gostei delas. E por isso treinei o que poderia dizer. Tornei-me escritora por necessidade, por incompreensão! é o que eu digo sempre. Mas ainda há quem me pergunte o que isso quer dizer. E ainda mais nas entrevistas que são sempre aqueles momentos em que tudo é imprevisto, e os jornalistas teimam em não combinar o que perguntar, ou se combinam acabam sempre por perguntar coisas diferentes do combinado. Como por exemplo, sente-se uma pessoa incompreendida? Uma vez perguntaram-me isso e eu respondi-lhe que sim, tal qual como me estava a sentir naquele momento. Penso que o jornalista não estava à espera daquele imprevisto. E talvez por sorte, a dele e porventura a minha, a entrevista acabou. E depois disso ele foi logo para o camarim e não ficou a falar comigo, o que lhes agradeço sempre, ainda que em silêncio.
Leio poesia porque sinto que a compreendo, ao contrário de muitos que a lêm e dizem o contrário. Ou quando dizem que a compreendem, eu fico sem os compreender. Leio poesia porque sinto que ela me compreende. Porque mesmo sem ela o dizer e saber eu sinto-me compreendida, abraçada. E ainda mais, abraçada sem abraço, até porque o abraço é dispensável. Assim como muitas outras coisas o são.
Uma vez li uma poesia, toda ela escrita em letras minúsculas. Fiquei tão cuirosa. Ao ponto de ter demorado três anos e meio para ler o livro. Não que ele fosse assim tão extenso, denso ou complexo. Mas porque cada vez que pegava no livro me perguntava sobre o porquê de todas as palavras serem escritas em minusculas. E a pergunta não me saia da cabeça, assim como muitas outras cosias não me saem da cabeça. Ainda bem que a minha cabeça continuou a crescer durante mais uns anos. Até porque não sei onde é que podia arrumar tantas coisas. E ver-me livre de coisas é algo que só de pensar me faz ter vontade de arrumar. Demorei três anos e meio porque não sabia como havia de saber a resposta à minha pergunta e não sabia como a havia de colocar. Sabia quem era o escritor, mas não sabia como havia de a perguntar. Então comecei por ler tudo o que havia sobre o escritor e as entrevistas que lhe tinham feito para saber se alguém lhe fazia a mesma pergunta que eu. Mas ninguém o fez. Se ao menos eu pudesse fazer a pergunta. Até que um dia fui a uma apresentação de um dos seus livros. Na altura tinha um amigo. Era o meu único amigo. Mas não é o único amigo no sentido de querer mais amigos. É o único no sentido de determinar que não há mais nenhum. É um descritor. Pedi por mensagem a esse meu amigo que fosse comigo e que nesse evento perguntasse ao escritor porque escreve tudo com letras minusculas. Ele fê-lo. E o escritor respondeu. Ele sorriu. E não o vi, porque tinha a cabeça para baixo e enterrada debaixo da pala de um chapéu. Mas o meu amigo disse-me. Ele sorriu. E respondeu, porque as palavras são todas iguais, não há uma mais importante que a outra. E por isso escrevo-as todas minusculas. Chorei. Foi a minha primeira vez. Ninguém viu porque eu tinha a cabeça para baixo e enterrada debaixo da pala do chapéu.
As palavras são todas iguais, não há nenhuma mais importante que a outra. Eu devia acreditar mais em mim própria, mas não o fazia. Já tinha pensado nisso. Assim como em tantas outras possibilidades. Algo que faço sempre. Mas aquele parecia-me uma das mais provaveis. Mas não acredito em mim. Não sei como o fazer. E nem sei se isso é algo que se ensina ao outro. E como nunca tentei fazer isso com ninguém, também não sei se resultaria. Mas por isso penso que a poesia me compreende. Assim como eu a compreendo. E também por isso é que eu falo com os livros, inclusive em voz alta. Em criança perguntavam-me se eu estava a ler em voz alta. E outros diziam-me para ler mais baixo. Não compreendia uma coisa nem outra. Eu não estava a ler. E muito menos em voz alta. A minha voz era muito mais aguda. E eu não estava a ler mais baixo como diziam, até porque nunca soube o que é isso de ler mais baixo. Onde é que isso fica? Eu não lia, falava com o livro. Na verdade falava com a poesia. Nunca falei com um livro. E quando uma vez me disseram e insistiram que eu estava a ler com um livro enervei-me. Como nunca me tinha enervado. Não podiam dizer uma coisa que não era verdade.
Fiquei dias a ruminar nisso, assim como fico horas a mastigar as palavras.. Digo em voz alta a mesma palavra, até ao momento em que ela começa a perder o sentido e se torna no puro objecto sonoro. As outras pessoas chamam isso de ecolállia. Na verdade é uma palavra que eu gostei de repetir. Ecolália, ecolália, ecolália. E foi assim que a ecolália se tornou um objecto. Quando nós dizemos, por exemplo, pedra, madeira, estrelas, ou qualquer outra coisa assim. E depois repito-as, pedra, pedra, pedra, muitas vezes. E depois a pedra já não quer dizer nada. É uma pedra, simplesmente. É ela mesma.
Se a poesia é autista? pergunta-se Cláudia. Sim, é. E não é porque haja muitas pessoas que possam não a entender, assim como não entendem as pessoas autistas. Ainda que seja uma ideia interessante. A poesia é autista por ser única. Por ser escrita de forma única. E lida de forma única. E sentida de forma única. E voltada a reler dessa forma única e o resultado poder ser outro, ou repetidamente o mesmo. A poesia é autista porque pode ser escrita na berma da página sem que ninguém a reclame. E se adapte para a ler, ou a leia com os olhos entortados, e ainda assim lhe faça sentido, e dor nos olhos depois de ter estado horas e horas a ler. A poesia é autista porque pode não ter nada escrito, simples folhas em branco, ou com uma virgula num qualquer lugar de caracter ocupado por si, criando o que algumas pessoas poderão designar de poesia minimalista. E ainda assim quem a escreveu sentir que é algo completamente diferente. Afinal uma virgula pode ocupar muito espaço e fazer transbordar um copo e também uma página. A poesia é autista porque o simples virar de uma página e outra e outra pode ser em si um poema. Até porque ningúem vira as páginas da mesmas forma. Nunca viram ou ouviram uma pessoa virar uma página como se fosse um suspiro? pergunta Cláudia. O som é diferente, mais espaçado. Nada igual às páginas viradas apressadas, uma atrás da outra, avidamente. A poesia é autista porque o cheiro das páginas é diferente. Assim como o cheiro das palavras. Sim, as plavras têm cheiro. As pessoas não sabem que as palavras são constituídas por tinta e essa tinta tem cheiro, e essa tinta e esse mesmo cheiro não é sempre igual, assim como o cheiro que vai sendo diferente ao longo do tempo? pergunta Cláudia de forma retórica.

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