Quem nunca viu árvores na sua vida? E certamente árvores de diferentes tamanhos, espécies e feitios! A maioria destas árvores estão na natureza e não nos nossos quintais sobre a nossa directa responsabilidade. Passamos por algumas delas no nosso caminho diário para o trabalho ou casa. E na grande maioria das vezes não fazemos ideia ou sequer nos perguntamos se precisariam de ser regadas ou outro cuidado qualquer. Mesmo quando apresentam um ar sequioso e de maltrato. E quando vimos árvores como esta da foto até sorrimos e nos perguntamos de como foi possivel a árvore ter crescido daquela forma e tão atipica! Talvez até venhamos a tirar uma foto para mostrar a alguém por termos ficado tão incrédulos de tal feitio. Mas pouco mais do que isso e lá continuamos o nosso caminho.
Há muitas outras coisas da vida que vamos tendo uma atitude semelhante. Sejam com coisas, seres vivos e até mesmo seres humanos. E não sei se isso é algo negativo ou positivo. Provavelmente é assim que encaramos várias das coisas que nos rodeiam. Talvez sejam muitas as coisas, até demasiadas. Talvez seja assim a natureza das coisas.
Não que eu perceba muito de árvores, ainda que tenha aprendido a fazer enxertos em árvores de fruta. Ou saber qual a altura de podar uma oliveira. Mas percebo alguma coisa de pessoas e de como cuidar delas.
Tal como em relação às árvores, vários de nós sabe algumas coisas sobre o autismo. Alguns de nós até sabe bastante sobre o autismo. Sabemos que é uma perturbação do neurodesenvolvimento. E que ocorre ao longo da vida, sendo possivel diagnosticar a partir dos 24 meses. Também sabemos nomear aquilo que são os critérios de diagnóstico e que apresentam uma grande variabilidade e heterogeneidade na sua forma de expressão. E até que existe uma diferença na forma como algumas mulheres autistas têm um perfil de funcionamento diferente dos homens. E que no autismo se podem também observar várias outras comorbilidades psiquiátricas. Sendo que se estima que entre 1% a 2% da população mundial apresenta este diagnóstico. Como se vê sabemos bastante! É como se dissessemos que na fotografia podemos observar uma Olea europaea, pertencente à família das Oleáceas. Mas o que é que sabemos sobre a vida no quotidiano da Oliveira? E o que é que sabemos sobre a vida diária das pessoas autistas? No caso da fotografia que acompanha este texto podemos tecer algumas hipoteses do porquê da árvore se apresentar com aquela determinada curvatura. Mas pouco mais do que isso. Além de muito provavelmente estarmos enganados. Ainda que possamos acentuar os nossos galões da ciência dizendo que há alguns estudos cientificos que têm demonstrado isto e aquilo e que comprovam a nossa hipotese. Fazemos isso para as Oliveiras e também para o Autismo e para as pessoas autistas. Ainda que saibamos ou póssamos saber muito sobre ambas as coisas. Mas precisamos de saber mais e melhor sobre a vida, o quotidiano delas. Talvez seja isso a natureza das coisas. A natureza interna das coisas e não somente aquilo que pode ser observado e até fotografado.
Quando pensamos nas carcterísticas comportamentais que estão presentes numa pessoa autista, corremos algum risco em ficar centrado apenas na descrição e observação destas características. E de como podemos propor algumas estratégias para reduzir e/ou mitigar algumas das questões que podem estar a causar mal estar e sofrimento. Mas estas características também se expressam naquilo que é a vivência interna da pessoa autista, e naqulo que é a própria construção que a pessoa faz do Mundo e dos outros e na sua relação com estes. Para além disso, há comportamentos que são observados e conhecidos, mas também há alguns outros que não são observados e compreendidos em como eles existem e participam na construção deste mundo e experiências internas da pessoa autista.
Por exemplo, algumas das questões que não passam por uma simples observação prende-se com os pensamentos e as emoções e a forma como estes podem ser vividos internamente e somente para o próprio. E também aqui pensar que a forma como estes pensamentos e emoções ocorrem e são vividas também apresenta uma igual heterogeneidade comparativamente a tantas outras características presentes no espectro do autismo.
As diferenças individuais na forma como os pensamentos e as emoções são vividos podem ser especialmente relevantes tanto para a experiência autista como para os resultados em termos de saúde mental. E isto porque estes pensamentos podem prender-se com a forma como as pessoas pensam o Mundo, os acontecimentos onde estejam ou não presentes e envolvidos, e a relação com os outros, sejam nas relações de interacção social, mas também nas relações com a família e amigos. E o facto de não haver em muitas vezes uma verbalização e partilha destes mesmos pensamentos e do processo de pensamento sobre determinada questão isto não significa que não estejam a acontecer. E os pensamentos são uma das possibilidades de apreender o Mundo, de interagir com ele, mas também de o poder pensar à distância no tempo e de o resignificar ao longo da sua história de vida. Os pensamentos não são apenas operações e processos operatórios para a realização das tarefas/actividades diárias mais funcionais do quotidiano. Os pensamentos servem para reflectir sobre os acontecimentos e a si próprio, mas também para imaginar e fantasiar e se projectar no futuro e no seu projecto de vida futuro. E aqui podemos pensar na existência de várias possibilidades de exercicio do pensamento nas pessoas autistas. Nomeadamente, estes pensamentos podem traduzir-se num discurso verbal interno (i.e., diálogo interno). E se pensarmos que em vários momentos a pessoa autista se encontra isolada, seja de uma forma fisica, mas também do ponto de vista relacional. Ela vai-se encontrar várias a pensar/dialogar consigo mesma e até a obter uma satisfação desses momentos, para além da acção e construção que está a ser feito sobre o Mundo. A nível das emoções também se passam situações semelhantes em termos da própria variabilidade. Por exemplo, muitos adultos autistas, mas não todos, têm alexitimia, que é uma característica definida por dificuldades em identificar e descrever emoções.
A fenomenologia da experiência interior nas pessoas autistas é caracterizada por uma variedade muito maior do que apenas a fala interior - incluindo imagens visuais, pensamento não simbolizado e consciência sensorial. Por exemplo, algumas pessoas autistas experimentam a fala interior a maior parte do tempo, enquanto outros têm muito poucas ou nenhumas experiências de fala interior e podem, em vez disso, experimentar pensamentos visualmente ou noutras modalidades. Esta forma como as pessoas autistas se relacionam com o Mundo cria ele próprio um outro espaço e que é único daquela pessoa. E não, não se trata de dizer que é o Mundo onde a pessoa autista se refugia! Ainda que o faça em determinados momentos, tal como qualquer um de nós o faz. Esta fenomenologia da experiência interior pode ser caracterizada em algumas pessoas autistas por imagens. Como se o Mundo estivesse todo ele arrumado numa Google Drive infinita de imagens. E que é através destas que a pessoa em questão simboliza as experiências e acede às mesmas seja de uma forma voluntária ou involuntária. É este diálogo sobre as experiências perceptivas e a relação com o corpo e o espaço que é fundamental poder aceder para uma melhor e mais aprofundado conhecimento da pessoa autista. Ainda que em algumas pessoas tenha de ser dado a conhecer este processo e os passos para o realizar. Ainda que venhamos a descobrir que a pessoa já o faz de uma forma natural ainda que possa não lhe dar essas designações.
As experiências quotidianas compõem um exercicio fundamental da relação da pessoa com o seu ambiente. E para isso precisamos de ir além daquilo que são as características presentes no seu diagnóstico. Necessitamos de acompanhar a pessoa na sua forma de apreender o ambiente nos detalhes mais simples e frequentes da sua acção no quotidiano. Precisamos de aceder à informação e ao modo como algo aparece para a pessoa autista na sua consciência. O que não se trata de uma representação da coisa observada, nem mesmo da coisa em si, mas a coisa tal como é revelada na consciência da pessoa autista. Este exercicio é não soomente fundamental mas desafiante para um profissional de saúde que procura avaliar e acompanhar uma pessoa autista. Mas é vital que o possa fazer despindo-se da sua própria forma de olhar o ambiente e assuma uma posição de escuta acerca da forma como a informação é trazida pela pessoa autista.
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