Era uma vez. Quanto contamos histórias é hábito começar assim. Mas, e como é que contamos a história do nosso corpo? E como é que o meu corpo conta a minha história? São duas coisas diferentes. Mas a história é provavelmente a mesma! E por que é que eu tenho esta fotografia dos meus pés neste texto? Costumo olhar frequentemente para baixo. Os pés costumam ser uma parte do meu corpo que eu conheço bem. Quase que consigo saber como estou apenas por olhar para os meus pés. Não é nenhuma ciência ou coisa do tipo. É apenas a minha experiência. É a minha história. Os meus pés nem sempre foram assim. Já foram mais pequenos e tudo mais. Mas não é isso. Ou não é apenas isso. Mas não sei dizer muito bem. Talvez por estar habituado a contar a minha história por cima. Ou seja, intelectualizando ou racionalizando. Mas o corpo não deixa de sentir. É como se fosse uma parte da minha história que não está a ser contada. Até porque não é apenas os meus pés que estão diferentes. O caminho que faço também. Eu antes não percorria aquilo que percorro hoje. E o contrário também é verdade. Eu antes percorria coisas sem saber. Hoje em dia já penso mais se vale ou não a pena fazê-lo. Mas antes também haviam coisas que me assustavam a levavam a não o fazer. E hoje já o consigo fazer ou contornar. Curioso, que quando conta a história do meu corpo e deixo que o meu corpo conte a minha história, a perturbação de ansiedade já não está lá. Ou então não assume o papel principal na história. Penso nisso quando me diagnosticaram autismo. Ouvi-os falar durante horas. Quer dizer, a mim pareceu-me horas. O médico falava, os meus pais ouviam. E depois ao contrário. Ninguém me ouvia, ninguém me falava. Apenas eu falava comigo próprio. Os meus pensamentos falavam entre si. Tinha sempre algum ruído na minha cabeça. Naquele dia parecia não ser suficiente para se sobrepor a eles. Estava mais cansado. Ter de ouvir todas aquelas coisas. Deitei-me. As coisas escutadas a partir do chão parecem diferentes. Talvez por os músculos estarem mais descontraídos? Não sentia as pernas. Era uma sensação estranhamente agradável. Nunca tinha pensado nisso de não ter pernas. Mas naquele momento pareceu-me interessante. Melhor do que ouvir que não tinha competências de isto e daquilo.
Em tempos quiseram estudar-me, analisar-me, avaliar-me. Disseram que iam contar a minha história. Quando a li percebi que não era verdade. Aquela não era a minha história. Aqueles podiam ser os meus comportamentos, mas não a minha história. E muito menos a minha infância e adolescência. Quando mais tarde comecei a ler artigos científicos e alguns deles sobre o autismo, percebi de onde vinha aquela tendência. Quando lia o titulo de um novo artigo sobre o tema a propor contar a história do autismo não parava enquanto não o lesse. Lia-o todo. E continuava frustrado a não encontrar a história do autismo e daquelas pessoas, fossem crianças, adolescentes ou adultos autistas que tinham participado naquelas investigações todas.
O corpo como um ser sensorial pode ser complicado se vivemos em espaços com o nome autismo. Isto porque, são vários aqueles que usam a palavra autismo e que falam sobre ele. Seja aqueles que o diagnosticam, mas também todos os outros que o vivem de forma directa ou indirecta. E esta narrativa de todos nós, produzida através dos discursos que fornecem conhecimento legítimo do que significa ser autista, como é o caso da biomedicina. Passam a tornar o ser sensorial em alguém conhecido. Mas mais que o ser se tornar conhecido, é ele passar a ser visto como sensorialmente fora da norma e por sua vez passível de ser gerido.
As experiências do corpo em relação ao autismo dentro do discurso dominante são contabilizados pela função cerebral, regulação ou do não conseguir regular as experiências sensoriais. O corpo está amarrado pelo cérebro e pertence-lhe. Muitos irão correr a dizer que o autismo é muito mais do que isso. Outros irão referir que quando falam do autismo não é apenas isso que querem significar. E certamente que o autismo não é apenas isto, aquilo ou outra coisa. O autismo enquanto entidade de diagnóstico não é apenas um conjunto de carcaterísticas comportamentais. Ainda que os manuais de diagnóstico teimem em os apresentar enquanto tal. Mas os manuais são isso mesmo, manuais. Importantes, mas não exclusivos, únicos e detentores da totalidade daquilo que é o autismo. E no que diz respeito ao que muitos de nós falam sobre o autismo, é preciso pensar na construção social que toda esta narrativa leva a acontecer. Incidir o discurso nas competências e naquilo que a ausência destas ou a presença de outras competências leva a causar, vai construindo uma noção de um corpo incapaz ou não capaz. Um corpo disfuncional. E mais do que um corpo, é um cérebro disfuncional. Cérebro esse que se for pensado como aquele que gere o corpo e que relega este para um patamar de importância menor. Acabamos por construir toda uma limitação à construção de um espaço para um corpo actuante e com significado. E que pode ajudar sem dúvida a desconstruir esta noção de pessoa competente.
Precisamos de dar importância à personificação do autismo que está ainda bastante ancorada ao domínio do cognitivo. É compreensível a importância deste dominio e o impacto e presença que este tem na nossa vida. Mas não é apenas isso, seja para as pessoas autistas como para as não autistas. Por exemplo, vemos isso quando falamos de pessoas sobredotada. Em que corremos o risco de personificar esta pessoa com base na sua grande competência cognitiva. Negligenciado todo um conjunto de áreas fundamentais da sua vida, nomeadamente a emocional e existencial. Encurtar a nossa visão do autismo e da pessoa autista neste dominIo cognitivo é deixar pouco espaço para que qualquer outra coisa igualmente positiva possa surgir. Até porque estaremos demasiado preocupados com o processo cognitivo e da função cerebral, assim como das suas consequências na função corporal subserviente.
Ainda vivemos esta ideia do que o corpo é e não é, e o que a mente é e não é, tal como descrito num plano cartesiano de desembodied. E se desenharmos fronteiras em redor e entre o corpo e a mente, enquanto se insiste num corpo que é, em última análise, ditado pela mente. Aquilo que temos é que um corpo autista passa a ser chamado de uma mente autista. E o corpo deixa de ser visto como um local de conhecimento, de conhecimento do outro. E atendendo a que a sua mente é vista como limitada, a pessoa autista fica aprisionada e silenciado neste seu corpo.
A investigação realizada nas questões sensoriais está cada vez mais a desafiar o entendimento dominante do autismo, olhado como um défice na capacidade cognitiva da leitura das pessoas. Isto marca uma mudança emergente na investigação do autismo de um foco na estrutura e processos da mente para um foco em comportamento autista como vivido e vivenciado no corpo.
E para tal urge a necessidade de devolver a voz às pessoas autistas. Elas saberão dentro do espaço existente criar movimentos e falar sobre estes mesmos movimentos. Aqueles movimentos do seu corpo, do espaço que ocupam, do que ele sente e como tudo isto ajuda a contar a história vivencial da pessoa autista. Não se assustem os outros corpos que esta dinâmica não vai roubar nada a ninguém. Até porque o corpo é dos próprios. E o conhecimento é de todos.
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