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A gravidez vista por dentro

Mãe, Pai, como é que se fazem os bebés? Esta pergunta, normalmente quando feita antes da pré-adolescência causa alguns constrangimentos nos pais. Mas se perguntarmos, Como é que se fazem os bebés quando a mulher tem um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo?, muitos também irão ficar constrangidos. E não só constrangidos, mas também irão colocar todo um conjunto de questões sobre situação em si!


Não vos irei maçar ou dar nenhuma novidade acerca da gravidez, até porque não é a minha área de especialidade, não obstante ter feito quatro anos de trabalho enquanto psicólogo clinico na Psiquiatria de Ligação no Hospital de Santa Maria no serviço de Obstetrícia. Contudo, tal como ainda hoje continua a haver bastantes pessoas, mulheres e homens, com questões e dúvidas acerca da gravidez. O mesmo também se verifica e ainda de forma mais marcada quando se pensa na gravidez da mulher autista. Algumas pessoas poderão pensar - Mas porque é que alguém faz uma afirmação destas com espanto? Afinal de contas as mulheres autistas, sendo férteis também poderão engravidar! Mas o certo é que se continua a verificar uma escassez enorme de trabalhos científicos e até mesmo informação partilhada entre clínicos e profissionais de saúde sobre a gravidez na mulher autista.


Já se começa a verificar algum interesse na compreensão da gravidez de pessoas com uma dificuldade intelectual, mas mesmo assim, seja nesta área, mas também na saúde mental como um todo, é escasso a reflexão sobre o tema. E esta mesma situação leva por conseguinte a que muitas mulheres autistas e outras com dificuldade intelectual ou outro diagnóstico psiquiátrico tenham uma percepção mais frequentemente negativa acerca da sua gravidez e do processo de acompanhamento clínico da sua situação.


E como na gravidez se coloca muitas questões, eu deixo mais duas. O que é que significa para uma mulher autista estar grávida? Como é que estas duas condições coexistem?


A primeira vez que o coração dela bateu dentro de mim assustei-me! Passei boa parte da gravidez assustada! diz Carolina (nome fictício). Já tinha ouvido falar e lido sobre as transformações no corpo da mulher. E já sabia como é que as minhas questões sensoriais por vezes me deixavam exausta, mas a gravidez foi o expoente máximo! continua. Foi sentir literalmente uma pessoa dentro de mim. E quanto mais crescia mais eu sentia tudo. A certa altura ficaram a pensar que estava com alucinações, tal não era a forma como eu sentia tudo aquilo. Mas não consegui sentir a gravidez como algo agradável. Muito pelo contrário, foram nove meses de muitas dificuldades! conclui.


É muito difícil falar da minha primeira gravidez! diz Célia (nome fictício). A segunda gravidez já estava mais preparada e correu bem diferente. Não consigo dissociar a minha gravidez do meu autismo. Não consigo explicar muito bem, mas penso que tem a ver com a forma única como senti toda a gravidez, assim como sinto praticamente tudo na vida! refere. Curiosamente o facto de ser uma mulher autista preparou-me para a gravidez. Até porque fui aprendendo a não ser compreendida pela maior parte das pessoas. E na gravidez isso voltou a acontecer. O meu marido, o meu médico, e até os meus pais. As pessoas diziam que eu exagerava tudo. Ou então diziam que nada daquilo que eu dizia sentir fazia sentido! conclui.


As pessoas nunca compreenderam as minhas questões olfactivas! diz Joana (nome fictício). Diziam sempre que estava a cheirar coisas que não existiam. Tinha de ir dormir para a sala porque não aguentava o cheiro do meu marido. Mas na gravidez as coisas ficaram num patamar que até para mim foi estranho. Passei a estar ainda mais sensível. Ficava enjoada com tudo e com todos. E não é exagero. Precisava de ficar em casa e nem a minha médica parecia compreender. No trabalho não aceitavam as dificuldades que estava a ter. Foi um pesadelo, desabafa.


Ninguém compreendia! diz Carla (nome fictício) ainda a chorar. Eu tinha tido duas perdas gestacionais e não tinha sentido nada. E na terceira gravidez estava sempre em sobressalto e a dizer que também tinha acontecido o mesmo. Eu continuava sem sentir nada. Ninguém acreditava em mim. Nem mesmo as minhas amigas e que já tinham estado grávidas acreditavam. Diziam que qualquer mulher sentia, conclui.


Eu nem queria pensar quando ele nascesse! diz Matilde (nome fictício). Se até agora as coisas têm sido assim tão intensas, como é que vai ser quando o tiver de amamentar? questionava.


Nem com o cheiro do meu próprio corpo conseguia aguentar, diz Rosa (nome fictício). Tinha de tomar dois e três banhos por dia. E ainda por cima não podia usar qualquer perfume para disfarçar. E ao fim de algum tempo fartei-me do único gel de banho que usava há anos! desabafa. Diziam-me que era normal as mulheres grávidas sentirem os cheiros e outros estímulos de forma mais intensa. Mas aquilo tudo era demasiado para mim! conclui.


Para mim ser mulher autista e médica foi duplamente difícil na gravidez, diz Júlia (nome fictício). A informação que eu sabia enquanto médica ainda me deixou mais em sobressalto durante todo o processo. E depois ainda me diziam que eu não tinha de estar com todos aqueles caprichosos por ser médica. Foi horrível. Tive de ir ter o meu filho num hospital longe da minha área de residência porque simplesmente não aguentava mais tudo aquilo, refere.


As pessoas autistas apresentam frequentemente hiper ou hipo sensibilidade sensoriais, apresentando respostas atípicas aos estímulos sensoriais presentes no ambiente. Estas sensibilidades sensoriais alteradas podem envolver um ou mais dos cinco sentidos, e a sua intensidade pode variar de pessoa para pessoa. Além disso, nos últimos anos, alguns estudos começam a colocar a hipótese de que os aspectos sensoriais podem estar subjacentes a toda a sintomatologia autista. Por conseguinte, as mulheres autistas que desejam ser mães podem enfrentar desafios únicos e complexos devido a estas características sensoriais.


A gravidez é um período crítico na vida de uma mulher, durante o qual o seu corpo passa por uma série de transformações físicas, hormonais e psicológicas. Estas mudanças podem ser percepcionadas de forma diferente pelas mulheres autistas devido às suas respostas sensoriais atípicas. A sensibilidade aumentada ou diminuída aos estímulos ambientais pode amplificar as experiências físicas e emocionais típicas da gravidez, afectando assim todo o processo de gestação, mas também o pós parto.


As alterações sensoriais nas mulheres autistas podem manifestar-se de várias formas durante a gravidez. Por exemplo, o aumento da sensibilidade ao som pode fazer com que seja difícil tolerar ruídos comuns associados à vida quotidiana ou a consultas médicas, aumentando o risco de stress e ansiedade para as mães grávidas. Além disso, uma maior sensibilidade à luz ou aos odores pode intensificar a ocorrência de náuseas e desconfortos relacionados com a gravidez.


Por outro lado, algumas mulheres autistas podem ter uma sensibilidade táctil, o que pode influenciar a perceção de alterações físicas típicas durante a gravidez, como as sensações relacionadas com os movimentos fetais. Estas experiências sensoriais alteradas podem também afetar a capacidade da mãe grávida para responder às necessidades do seu corpo durante a durante a gravidez, levando a uma menor consciencialização das mudanças físicas ou potenciais complicações.


Além disso, a forma como as mulheres autistas interagem com os outros durante a gravidez pode ser influenciada por aspectos sensoriais. As dificuldades em compreender as nuances da comunicação não-verbal e as interacções sociais podem complicar o apoio social durante este durante este período crítico, influenciando o bem-estar emocional da futura mãe. Assim, o processamento sensorial pode ter um impacto significativo nas tarefas relacionadas com o parto, como a amamentação, que pode representar uma dimensão muito importante devido às dimensões corporais e sensoriais envolvidas.


Os exemplos aqui apresentados, assim como a reflexão presente no texto, não pretende dizer que a experiência da gravidez na mulher autista é traumática em si mesmo e sempre. No entanto, é importante que possa ser feito uma preparação para todo este processo, assim como um acompanhamento adequado a estas e outras necessidades presentes na mulher autista no decorrer do processo. Até porque a experiência negativa durante o processo de gestação, parto e pós parto, poderá condicionar a forma como a mulher autista, agora mãe, se irá relacionar com o seu filho. Mas fundamentalmente parece-me de todo vital que se possa falar mais e melhor sobre estes outros aspectos da vida quotidiana no espectro do autismo. Penso que em parte isso não acontece por todo um conjunto de estereótipos e crenças enviesadas sobre aquilo que poderá ou não fazer sentido de acontecer no espectro do autismo. Seja a gravidez, mas também e por conseguinte a parentalidade, as relações amorosas e a sexualidade, a felicidade, etc. Estes e outros aspectos que fazem parte do espectro da vida de todos nós, também faz parte do espectro do autismo sempre que as pessoas autistas em questão assim o desejem. Aos demais de nós não autistas cabe-nos respeitar, compreender e participar no processo de forma construtiva.


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