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Foto do escritorpedrorodrigues

A culpa é madrasta

"Antes sentia-me envergonhado e culpado. Não sabia porquê. Sentia-o. Descobri algum tempo depois que parecia ter a ver com aquela coisa do Autismo. Eu tinha Autismo. Tempos depois deixei de sentir muito daquilo tudo. Parecia sentir-me bem. E depois voltei a sentir-me envergonhado e culpado. Já não era por causa do Autismo. Era por causa do álcool e da ganza. Não consegui deixar uma coisa nem outra. E isso envergonhava-me e levava-me a sentir culpado. E depois a minha vergonha e culpa parece que cresceu. É como se o Autismo, o álcool e a ganza se tivessem junto em mim. Agora? Agora ainda vai sendo difícil. Deixei o álcool e a ganza. Não deixei o Autismo, mas já não sinto vergonha nem culpa!".

"Eu comecei a consumir por acaso. Parecia uma brincadeira. E eu nunca tinha tido a sensação de ter pertencido a um grupo. Não me trataram mal, não me fizeram mal, nem sequer me julgaram. E eu estava cansado de sentir tudo aquilo. Tal como estava cansado de não me compreenderem e eu não compreender o porquê de tudo aquilo acontecer, ou do mundo ser como é. Mas ao fim de muito pouco tempo senti-me completamente diferente. E naquela vez eu senti que aquele diferente era um bom diferente. Era um diferente que que eu queria continuar a sentir. Os meus músculos, normalmente tensos, e a minha posição frequentemente rígida, dão-me dores suficientes que felizmente a minha hiposensibilidade à dor leva a que eu a consigo tolerar um pouco mais e melhor. Mas ainda assim é difícil. E naquele momento eu não senti isso. E não senti os meus pensamentos a invadirem-me de forma vertiginosa e sem pedir licença. Principalmente, aqueles pensamentos tortuosos e difíceis de explicar por vezes até a mim próprio. E quando um deles me tirou uma fotografia e eu a vi chorei. Nunca me tinha visto e muito menos a sorrir. Afinal aqueles era o meu sorriso. Afinal eu conseguia sorrir. Eu queria continuar a sentir tudo aquilo. Gostei daquela brincadeira. Pelo menos durante algum tempo.".


"Num outro dia, um outro grupo em que um dos que eu tinha estado a fumar uma ganza, convidou-nos a todos para uma festa. Parecia um sonho, mas daqueles bons e em que continuamos acordados para poder participar activamente nele. E eu fui. Não sei porquê? Eu que não ia a uma festa de anos há não sei quantos anos. Provavelmente nunca fui e não me lembro. Lembro-me é de pensar que as festas deviam todas ser uma grande confusão e barulheira e cheias de coisas que não saberia fazer, dizer ou ambas, como por exemplo dançar. Nem pensar! Mas naquele dia fui. Não me perguntem porquê? Ao chegar levei uma palmada nas costas e um copo de cerveja na mão. Vi que fizeram aquilo aos quatro que estavam na fila à minha frente. Não disse nada. Nem me encolhi com a palmada. Afinal não sentia dor. Pelo menos não aquele tipo de dor. E quando à cerveja ela até me soube bem. Não era doce. Muito pelo contrário, tinha um travo amargo. Bebia-a de um golo só. Tinha a garganta seca. Isso acontecia-me muito com a ansiedade. Eu já sabia e por isso não estranhei. Olharam uns quantos para mim e fizeram-me um sinal de aprovação e o dono da casa fez-me sinal para lhe dar cinco. E eu fiz. E ele colocou uma outra cerveja na mão. Pensei que deveria repetir para perceber se acontecia o mesmo. E aconteceu. E voltou a acontecer mais vezes aquela noite. Até dancei. Eu que nunca tinha dançado.".


"A vida parecia ser outra. Saia de casa mais cedo e com mais vontade. Não deixei de sentir ansiedade. Nem todas as outras coisas. Mas saia de casa com mais vontade. Pelo menos não me perguntava o porquê. Os meus pais sempre quiseram que eu saísse. Que tivesse um grupo. Que fosse diferente, melhor. E eu nunca me apeteceu verdadeiramente sair. Não como os outros diziam. Não que eu por vezes não quisesse. Mas nessas alturas ficava estranho eu tentar ir. Parecia forçado, e eu não iria fazer uma coisa daquelas. Não me apetecia e sempre que me diziam que tinha de ir, sair, conhecer pessoas, sempre me senti mal em todas essas vezes. Sentia-me inferior, menos capaz. Porque não estava a fazer uma coisa que me diziam. Porque não estava a fazer uma coisa que os outros todos faziam. Porque estava a deixar os meus pais desapontados. Sentia-me envergonhado mas também culpado. Eu sabia o que era isso. Parecia que quase tinha nascido comigo. Como se a vergonha e a culpa fossem o meu pai e a minha mãe. E eu fosse filho deles os dois. Mas naquela altura a minha vida parecia estar a ficar mais e mais longe disso. Não sabia eu o quanto!"


"Já nem sei quanto tempo passou. A questão do tempo também sempre foi difícil de compreender para mim. A coerência das coisas sempre me pareceu algo que a todos os outros parecia estanho ou difícil de compreender. Pareciam não estar na minha cabeça. E eu não estava na cabeça deles estou certo. Talvez tenha passado muito tempo. Os meus pais pelo menos pareciam mais velhos e também com menos disposição para lidar comigo. Nem eu já tinha disposição para lidar comigo. Mas as coisas ficaram descontroladas. Como em muito na minha vida ficava descontrolado e rapidamente. Quando algo acontecia de uma forma diferente, foram da minha rotina. Mas agora era diferente. Já nem sabia qual era a minha própria rotina. Já não sabia quase nada. E antes disso não sabia muito mais. A vergonha voltou a surgir e a culpa também. Tudo parecia mais confuso. E eu que pensei saber o que eram coisas confusas descobri coisas ainda mais confusas. Os meus pais quiseram que eu fosse ajudado a deixar o álcool e a ganza. Eu já parecia incapaz de as deixar, como não deixava o Autismo. Parecia ser uma coisa para sempre e incontrolável. Eu já sabia o que era isso quando precisava de fazer ou dizer certas coisas de certa forma. Mas com o álcool e com a ganza as coisas pareciam diferente. Eu parecia diferente. E então lá fui com os meus pais falar com alguém.".


"Passou outro tanto tempo. E desta vez eu estou capaz de conseguir saber quanto tempo.O meu terapeuta ensinou-me uma forma de contar os dias - passei a escreve-los. Todos os dias escrevia. E escrevia mais quando sentia mais desejo de beber ou fumar. Escrevi sem parar. Houve dias inteiros que penso não ter feito outro coisa. Escrevi, escrevi-me, escrevi o que sentia e pensava, ainda que alguma da vergonha e da culpa ainda lá estivessem. Passaram 2920 dias. Todos eles. Poderia dizer que foram 8 anos, mas não parece a mesma coisa. Tudo o que senti no caminho para deixar de consumir não poderia ser resumido no número 8 ao invés do número 2920. Este já parece ser próximo do que vivi. É verdade, deixei de consumir. E antes disso deixei a vergonha e a culpa. E aceitei a minha responsabilidade. Quanto ao Autismo, não o deixei, mas deixei de sentir vergonha e culpa por ele.".

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