Podes explicar-me como é que nunca me diagnosticaram em todos estes anos? Pergunta Alfredo (nome fictício) de trinta e seis anos. Esta mesma pergunta já foi feita por muitas outras pessoas e pelos seus pais. O que é que eu fazia em criança que os médicos e os psicólogos a que eu fui não viram nada? Pergunta Adelaide (nome fictício). Poderíamos pensar que estas pessoas nunca tivessem ido procurar ajuda médica ou psicológica. Mas foram. E muitos deles procuraram insistentemente. Quantas vezes um dos pais não confessou já que durante anos lutou contra toda a família que a considerou louco/a por achar que o seu filho/a estava no espectro do autismo!? Ou cada vez mais adolescentes e jovens adultos que estando despertos para estas características do neurodesenvolvimento e neurodiversidade vão colocando esta mesma hipótese!
Quando fazemos uma avaliação de despiste de Perturbação do Espectro do Autismo (PEA) na pessoa adulta procuramos avaliar todo um conjunto de informação da sua história clinica e do desenvolvimento ao longo da vida. E esperamos encontrar dados e situações ocorridas ao longo da vida que possam ir ao encontro do diagnóstico. Até porque sabemos que de acordo com os critérios de diagnóstico para uma PEA, os sinais e sintomas devem estar presentes desde a infância. Ainda que continue a haver um número significativo de pessoas diagnosticadas tardiamente.
É verdade que a grande heterogeneidade observada no autismo, em que temos pessoas com sinais e sintomas com uma apresentação mais subtil. E que quando comparado com a representação que muitas pessoas têm do autismo não parece fazer sentido pensar em autismo naquela pessoa. Ainda assim, é fundamental poder frisar e ajudar a educar toda uma Sociedade de que o autismo é um quadro clinico com uma expressão comportamental muito mais variada do que se possa pensar. Além de sublinhar e ajudar a desconstruir a ideia de que as pessoas autistas não podem ser funcionais a vários níveis (e.g., socias, cognitivos, etc.). Até porque o são, independentemente do nível de sofrimento psicológico associado.
Para além disso, também sabemos que o perfil cognitivo mais elevado, ser do sexo feminino e ter uma capacidade de poder desenvolver comportamentos de camuflagem social. São todos factores que acabam por dificultar a identificação dos casos ao longo da vida. Ainda assim, é visível que muitos dos comportamentos observados na vida adulta e que configuram um diagnóstico de Perturbação do Espectro do Autismo estão presentes desde sempre, ainda que com configurações algo diferentes. Além de que a interpretação que qualquer um de nós faz de muitos desses mesmos comportamentos do outro ao longo da vida vão sendo diferentes. Por exemplo, ainda é muito comum que a designada timidez possa ser vista como normativa na infância e até durante parte da adolescência. Mas tendencialmente vá sendo menos tolerada no inicio e durante a vida adulta. E como tal passa a ser entendido como um comportamento causador de maiores dificuldades também.
Ou então, a existência de várias outras perturbações psiquiátricas associadas quando existe um diagnóstico de PEA, faz-nos crer na dificuldade em si em poder melhor e mais rapidamente identificar um diagnóstico de autismo quando há toda uma constelação de outras condições presentes.
Ainda assim, aquilo que nós vamos observando na clínica e a própria investigação cientifica corrobora isso, é que quando se diagnostica uma Perturbação do Espectro do Autismo na vida adulta. E o quadro clinico é clinicamente significativo e com grande impacto na vida da pessoa. Aquilo que constatamos é que muitas destas e outras características semelhantes foram estando presente ao longo da vida desde a infância. Como tal, as perguntas inicialmente referidas neste texto do Alfredo e da Adelaide fazem todo o sentido - Como é que as pessoas não notaram que se passava algo comigo e que me estava a causar imensa dificuldade? Até porque não é justo justificar que a pessoa em questão não falava quase nada sobre si, o que pensava e principalmente sentia. Até porque é algo que é suposto acontecer de uma forma geral e que quando não está presente nos deve chamar a atenção. Seja enquanto pais e professores mas também profissionais de saúde.
Precisamos de continuar a reflectir sobre os porquês destas e muitas outras pessoas chegarem à vida adulta sem um diagnóstico ou sem um diagnóstico adequado. Até porque as características comportamentais foram estando presentes. Mas principalmente, a expressão do sofrimento psicológico garantidamente esteve e continua a estar presente.
Podemos pensar que há todo um conjunto de factores na própria estrutura familiar que possa enquadrar parte desta situação. Por exemplo, o facto de haver na família nuclear situações clínicas iguais ou semelhantes e que também não foram diagnosticadas. E que leva a que os pais possa ter um enviesamento na leitura de alguns dos comportamentos do seus filhos observados durante o desenvolvimento e enquadrando como normativos alguns deles. Mas quando pensamos que estes adultos estiveram pelo menos doze anos na escolaridade obrigatória e que passaram por vários estabelecimentos de ensino e professores, fica-nos a questão de como estes professores explicam estes comportamentos. E garantidamente não podemos esquecer todo o contacto com um conjunto de profissionais de saúde que vão ocorrendo com maior frequência durante a infância e a adolescência.
Comentarios