Há perto de 20 anos atrás perdi a visão na minha vista esquerda. Na altura era um jovem adulto. Depois de ter tomado conhecimento que poderia solicitar uma Junta Médica para avaliar o meu grau de incapacidade, e após alguma reflexão, decidi em avançar. Na altura não tinha nem 10% da experiência e contacto profissional a trabalhar com pessoas com uma perturbação neuropsiquiátrica. Tinha tido contacto com pessoas conhecidas ou amigos com deficiência. E além disso sempre me considerei um cidadão conhecedor e sensibilizado para as questões das pessoas portadoras de deficiência e da importância de poder garantir os seus direitos. Após ter reunido os documentos médicos necessários para o efeito, efectuei o pedido de Junta Médica e compareci na data proposta. No dia em questão, a Junta Médica foi extremamente rápida. Quase tão rápida quanto uma consulta rápida no Médico de Família. Mas não o tempo até à Junta Médica a pensar nos efeitos práticos que a situação teria na minha pessoa e na minha vida. Ou toda a reflexão que ainda hoje vou fazendo sobre este processo de avaliação das incapacidades. Na altura foi-me atribuído uma percentagem de incapacidade de 41%. Ao fim de pouco tempo deixei de pensar na situação e "arrumei o assunto", como se costuma dizer. Mais recentemente na vida e no contacto com pessoas autistas no âmbito da minha actividade profissional, voltei a revisitar esta questão - o atestado multiuso.
O atestado médico de incapacidade multiuso é um documento oficial que comprova que a pessoa tem uma incapacidade após avaliação na junta médica. O atestado médico de incapacidade multiuso identifica o grau de incapacidade que foi reconhecido à pessoa com deficiência e por norma, é o documento que serve de comprovativo da incapacidade da pessoa para que esta possa usufruir de benefícios ou direitos.
As pessoas autistas são-no ao longo da vida, e como tal as pessoas autistas adultas desejam ao fim do seu período de formação escolar e/ou profissional entrar no mercado de trabalho. No entanto, devido a algumas das suas características e sem dúvida à forma como o próprio mercado de trabalho e a Sociedade como um todo continuam a ser marcadamente neurotipica. Aquilo que assistimos é à necessidade das pessoas autistas poderem recorrer da legislação vigente para as pessoas portadoras de deficiência para serem auxiliadas na integração no mercado de trabalho. Nomeadamente, a legislação actual vigente, a Lei 4/2019, que estabelece o sistema de quotas de emprego para pessoas com deficiência, com um grau de incapacidade igual ou superior a 60 %. E lá voltamos nós à questão da avaliação das incapacidades, nomeadamente através do Atestado Multiusos. Ao longo destes anos são muitas as pessoas autistas adultas que tomando conhecimento desta possibilidade, além de um direito seu, que fazem o referido pedido. É realizada uma avaliação médica e psicológica e a informação é levada a Junta Médica para ser analisada.
"Todas as pessoas têm características próprias que as distinguem entre si. A diferença é, assim, uma característica das pessoas, logo, das sociedades humanas. O reconhecimento de que todas as pessoas são iguais em direitos, mas consideradas e respeitadas nas suas diferenças, é uma condição das sociedades inclusivas, livres e democráticas, em que Portugal se inclui", pode ler-se no Guia Prático - Os Direitos das Pessoas com Deficiência em Portugal. E decorrente deste paragrafo podíamos depreender que as pessoas autistas, tendo um diagnóstico de uma Perturbação do Neurodesenvolvimento e que é crónica, pudessem estar facilmente inscritos nesta caracterização. E que por conseguinte vissem a sua avaliação de incapacidades no Atestado Multiusos a chegar pelo menos aos 60%. Mas tal não acontece. E não acontece porque as pessoas autistas não têm essas necessidades e que acabam por se tornar em limitações? A minha resposta é não. E não sou o único a dizê-la, seja para as pessoas autistas ou para as pessoas com uma outra perturbação psiquiátrica. O modelo usado nesta avaliação continua a ser eminentemente biológico e não biopsicossocial. E isso faz toda a diferença. A leitura daquilo que são as comorbilidades psiquiátricas existentes no autismo e que aumentam significativamente as dificuldades da pessoa autista não estão a ser traduzidas para essa percentagem do grau de incapacidade. Como se estas situações, comprovados do ponto de vista médico e psicológico, fossem momentâneas e a pessoa tivesse competências por si só para as resolver.
Ao longo destes anos fomos evoluindo para deixar de considerar as pessoas com deficiência/incapacidade como pacientes com necessidade de cuidados, que não contribuem para a sociedade. Para olharmos para as pessoas com alguém que tem necessidade que as barreiras sejam removidas e eliminadas por forma a poderem ocupar o lugar que lhes assiste como membros de pleno direito a participarem totalmente na sociedade. Eram estas as palavras ditas no Plano de Acção sobre a Deficiência / Incapacidade para 2006-2015.
Podemos sempre pensar que não deveria ser preciso o uso da legislação para que a Sociedade fizesse o seu papel e cumprisse os direitos de todos os cidadãos. Mas sabemos que os mecanismos legais existem também para equilibrar estes desvios no comportamento humano. Até porque as pessoas continuam a necessitar no seu dia a dia de viver a sua vida e de poderem realizar os seus projectos. E um deles é o trabalhar. E negar a possibilidade destes apoios às pessoas autistas por não terem os designados 60% de incapacidade parece ser enganador.
Lê-se na página 97 da Tabela Nacional de Incapacidades, "I - Glossário das perturbações mentais mais frequentes no domínio da avaliação pericial do dano em direito do trabalho". E com esta e outras designações pensamos que este modelo não se adequada a muitas das situações que ocorrem na saúde mental, nomeadamente na Perturbação do Espectro do Autismo. Sendo que esta condição não decorre de nenhuma lesão ocorrida em contexto de trabalho ou algo similar. E a complexidade neurobiopsicossocial deste diagnóstico e da vida das pessoas autistas é de tal ordem que a tentativa de quantificação e atribuição de uma percentagem a uma incapacidade só pode causar mais problemas que ajuda-los a resolver. E quando se atribuiu a designação - Com grave/moderada/ligeira repercussão na autonomia pessoal, social e profissional, é fundamental perceber que esta repercussão pode não advir exclusivamente do comportamento evidenciado da pessoa. Mas também da forma como a Sociedade encara e lida com as pessoas com esta ou outra condição. E isso não creio que esteja a ser sujeito da avaliação criteriosa destes processos. Sendo que o prejuízo recai precisamente sobre a pessoa que mais precisa de ser compreendida.
Depois de cerca de 16 anos a receber medicação para diferentes patologias (recebendo diversos diagnósticos), a minha vida cruzou-se com a vida de uma psiquiatra especializada em TEA e PHDA no adulto e o meu mundo, ao mesmo tempo que começou a fazer sentido, começou também a desmoronar.
Havia tanto tempo que tinha adotado uma personagem que cheguei a perder a noção de quem eu era, se a personagem criada ou o desgaste arrasador que estava sempre presente.
Após um tempo em isolamento em cada (outra temporada de desemprego), ao retomar o trabalho já não mais consegui interpretar a antiga personagem que costuma vestir. A consciência que fora ganha, através do excelente trabalho da médica, permitiu-me ser uma pessoa genuína,…